Foi com este editorial que fomos contemplados com a Menção Honrosa do Troféu São Paulo Capital da Gastronomia 2017, comemorando seus 20 anos de existência, na categoria Reportagem publicada em revista editada no Brasil. No caso, a Hashitag. Aliás, a Revista Hashitag também recebeu o prêmio na categoria Revista de Gastronomia.
A nossa pauta era entrevistar o chef Masanobu Haraguchi, um dos poucos profissionais formados pela Associação dos Cozinheiros do Japão, uma austera organização que forma os chamados artesãos da cozinha. De poucas palavras, recatado e tímido, sabíamos que a missão seria quase impossível. No dia marcado para a entrevista, Haraguchi veio para cancelar a entrevista, porque estava com a geladeira de seu restaurante quebrada e precisava acompanhar o conserto. Disse que tudo o que ele tem a falar já saiu em um jornal da comunidade japonesa e portanto não tem nada a acrescentar. Fomos atrás do tal jornal, e colhemos depoimentos de pessoas próximas para compor o seu perfil. Quase um trabalho de detetive.
Para as fotos, ele consentiu mas pediu para não fotografá-lo. A dupla Rafael Salvador e Henrique Minatogawa fizeram as fotos de perfil, enquanto o mestre trabalhava. Não temos ele de frente, uma pena. O juri de premiação certamente não sabe destes detalhes do editorial e o quesito dificuldade não foi o que contou, mas para nós ficou com um sabor de vitória.
Esta matéria para a revista Hashitag, depois reproduzida aqui em Jojoscope, é provavelmente, a única entrevista publicada do mestre Haraguchi (1953-2022).
Matéria originalmente produzida para a revista Hashitag
PERFIL DO CHEF
MASANOBU HARAGUCHI
Por Jo Takahashi
Fotos Rafael Salvador e Henrique Minatogawa
Tímido, austero, resguardado e avesso a promoções pessoais. Talvez por isso, o chef Haraguchi é pouco conhecido na mídia gastronômica. Mas quem sabe, sabe. Sua cozinha é procurada especialmente por empresários e expatriados japoneses, bem como representantes de instituições governamentais do Japão, que procuram um sabor autêntico. #Hashitag driblou os obstáculos e conseguiu depoimentos e informações que demonstram por que o chef Haraguchi deve ser considerado a referência mais reluzente da cozinha japonesa no Brasil.
Formação
Foi em 1979, então com 26 anos, que o jovem Haraguchi chegou ao Brasil, com um certificado da Associação de Cozinheiros do Japão e um emprego garantido: seria o máster chef do Suntory, o suntuoso templo gastronômico que havia sido inaugurado em São Paulo. Para conquistar este cargo, Haraguchi carregava em suas costas uma invejável trajetória profissional, que começou como ajudante de cozinha, aos 18 anos, em Kansai, num ryotei chamado Kagairô, fundado em 1830, requintado estabelecimento que serve banquetes. Seu mestre era nada menos que Ban Shuzo, um gênio da cozinha kaiseki, a mais sofisticada e completa categoria da culinária japonesa. O jovem Haraguchi foi designado como discípulo principal do mestre. “Era uma dedicação exclusiva que se iniciava nas primeiras horas da manhã, e seguia até tarde da noite, quando eu o levava para a estação de trem”, recorda Haraguchi. Era Haraguchi também que recebia as repreensões, em nome da brigada, quando acontecia algum erro no serviço. “Tudo isso só me deixou mais forte”, avalia Haraguchi. Até o salário baixo era um estímulo para Haraguchi. Nas horas vagas da tarde, entre o almoço e o jantar, enquanto todos descansavam, o jovem Haraguchi arranjava bicos no mercado. Limpava peixe, trabalhava em rotisseries e até no Mercado Central.
A importância de um mestre
A dedicação ao mestre Ban valeu a pena. O jovem Haraguchi assimilou todas as técnicas da alta culinária japonesa, numa rua repleta de templos da gastronomia, como o Kitcho, o Tsuruya e o Nadaman, todos eles com mais de 150 anos de história. Iniciar a carreira num patamar tão elevado obrigou Haraguchi a ser mais exigente consigo mesmo. Naquele mundo não havia meio termo. O único padrão aceitável era o da excelência. Com o certificado da Associação de Cozinheiros do Japão, um diploma de proficiência que atesta o domínio técnico de todas os processos da culinária japonesa, o jovem Haraguchi quis conquistar o mundo. Queria ir para os Estados Unidos, testar o seu potencial. Pediu demissão do emprego, mas o restaurante não o liberou. “O sonho de ir para os Estados Unidos naufragou, porque meu visto não foi aprovado. Mas logo surgiu a oportunidade de trabalhar no novo restaurante Suntory, em São Paulo, e insisti mais uma vez com o chefe, que finalmente consentiu”. Haraguchi estava pronto para voar.
Os dias no Suntory
Em março de 1979, Haraguchi chegava a São Paulo, a bordo de um avião da Pan-Am. Foi recebido com honrarias por um público que esperava por uma culinária autêntica japonesa. Eram empresários de multinacionais e representantes do Consulado japonês. E foi para eles, o primeiro jantar produzido no Suntory. No segundo dia, para os representantes da comunidade nipo-brasileira. E seguiram-se mais jantares especiais, todos os dias, culminando com montagem de cardápio para o serviço de cathering da JAL e da VARIG. Os dias de máster chef eram extenuantes, mas absurdamente desafiadores.
“Foram seis anos no Suntory, e corria o risco de ficar estagnado”, admite hoje Haraguchi. “Acreditei que era o momento de me desafiar mais uma vez”. Estava então com 32 anos e pronto para oferecer seu potencial para mais pessoas, sem um padrão imposto.
Novos desafios
Nessa época, já existiam investidores interessados em vê-lo brilhar em outras paradas. Foi assim que Haraguchi passou pelo Semba, no bairro da Bela Vista, depois para o Miyabi, no prédio do Consulado Geral do Japão, ambos extintos, mas que se consagraram como templos gastronômicos, graças à arte e técnica do mestre Haraguchi. Nestes dois endereços consolidou sua fama de ser o único chef que produzia o autêntico kaiseki, a sofisticada sequência de pratos da alta culinária japonesa. “No Miyabi era para poucos, a maioria executivos japoneses, para no mínimo cinco pessoas, e que era preparada com cinco dias de antecedência”. Quem provou, experimentou o padrão ritualístico do kaiseki oferecido nas casas seculares onde Haraguchi se formou, em Osaka. “Tive a oportunidade de oferecer a culinária da região de Kansai, até então pouco conhecida do público paulistano”, recorda com certo saudosismo.
Ao mestre, com carinho
Hoje à frente de seu próprio restaurante, e sem investidores externos, Haraguchi se mostra livre para praticar sua arte. O nome de seu estabelecimento, que fica no bairro da Liberdade, reduto de restaurantes japoneses tradicionais em São Paulo, é Ban, em homenagem ao seu mestre Ban Shuzo, já falecido, e foi inaugurado em 2011. “Ele foi meu norte, minha referência e o que desenvolvo aqui é fruto de todo o aprendizado que absorvi sob sua orientação. Se eu cometer algum deslize, ele vai jogar um tamanco na minha cabeça”, brinca sem esconder também sua reverência ao mestre.
“Hoje o público brasileiro que aprecia a culinária japonesa mudou. As pessoas que viajaram para o Japão reconhecem quando um tempurá é bem feito, quando o corte do peixe está irretocável, quando existe equilíbrio no sushi ou quando um nabe (cozido) tem consistência”, avalia. No sushi por exemplo, Haraguchi é complacente com o cliente. Serve o shari (bolinho) conforme a preferência do freguês: mais pressionado ou mais fofo, a ponto de o arroz se dissolver na boca. Nas sequências de kaiseki que ele ainda prepara com maestria, cada prato deve ser servido como uma obra prima. Os cozidos devem ter um caldo dashi profundo, mas que também realcem os sabores de cada ingrediente. As frituras devem ser servidas secas e crocantes, mas conservando a suculência por dentro. Os grelhados não podem receber fogo em demasia. Na sequência kaiseki é importante não carregar no sabor de cada prato, tudo deve ser temperado com suavidade, para que o conjunto seja enaltecido. Para os amantes de comida condimentada, esta receita pode desapontar. Mas este é o segredo do washoku, indicada como Patrimônio Cultural Intangível pela Unesco, em 2013: enaltecer o sabor e a textura naturais dos alimentos.
Uma mensagem para o Brasil
Apesar da educação espartana que teve, Haraguchi não tenta aplicar o mesmo método para seus funcionários. Mas insiste na expressão de gratidão no trato com o público. “Seja bem-vindo”, “Muito obrigado pela visita”, são frases corriqueiras no seu restaurante. Em seu estabelecimento o trabalho em equipe e a dedicação contam pontos. Em troca, Haraguchi se empenha em garantir aos funcionários o seu emprego. Sua mensagem final define bem sua política de trabalho.
“Também quero expressar minha gratidão à comunidade nipo-brasileira, e aos brasileiros, que me acolheram nesta terra. Para receber a clientela japonesa, o natural seria contratar funcionários bilingues. Mas aqui, faço questão de selecionar brasileiras não descendentes de japoneses. É a minha maneira de agradecer a este país. Dando emprego a elas e abrindo uma oportunidade para que elas sejam introduzidas no universo da cultura japonesa”.