O Festival do Japão em São Paulo é o maior acontecimento na área de cultura e gastronomia japonesa e é realizado anualmente no mês de Julho. Um dos atrativos é sem dúvida, a culinária típica do Japão, mas no Festival ele tem um diferencial. Cada província do Japão, representada por suas associações culturais, encarrega-se de servir seus pratos típicos, que vão muito além do guiozá e do yakissoba. Assim o público pode ter acesso a pratos que nem sempre são encontrados em restaurantes. Muitos carregam séculos de tradição. Este ano, a província de Nara surpreendeu com o Kaki-no-ha-zushi (柿の葉寿司) um sushi prensado envolto com folha de caqui. Da cozinha, o jovem chef Francis Toshi Akuta comandava a animada equipe de voluntários, muitos deles ex-estagiários e bolsistas da província.
Bem lembrado pela jornalista Mary Lou Rebelo, que teve uma passagem pela Radio NHK do Japão, o kaki-no-ha-zushi foi descrito em detalhes por Tanizaki Jun’ichiro em seu belíssimo livro Em Louvor da Sombra ((In-ei Raisan, Companhia das Letras, tradução de Leiko Gotoda), que é um tratado sobre a beleza sob o ponto de vista japonês. Tanizaki, um profundo conhecedor da região de Yoshino, de onde vem esta iguaria, descreve a preparação do kaki-no-há-zushi feito com finas fatias de salmão. Impossível não se deliciar com esta passagem, e a felicidade de Tanizaki de compartilhar a receita com seus leitores.
Como muitas coisas do Japão, não se sabe ao certo de quando data esta prática de embrulhar um bolinho de arroz com folha de caqui. Mas é fato e há registros de que em meados da era Edo, assim por volta do século 17, já era costume fazer este bolinhos embrulhados com folha de caqui, especialmente no verão. É nesta época que as folhas estão mais verdejantes, e convenhamos, no Japão, havia pé de caqui em abundância. Era uma matéria prima de fácil obtenção. E hoje, sabe-se, a folha de caqui tem o poder de conservar os alimentos. Numa época em que não havia geladeira, a sabedoria popular ditava os costumes. Um bolinho de arroz com peixe pode durar até cinco dias envolto com folha de caqui ! Outra coisa fantástica é que a folha de caqui é rica em tanino, um tipo de polifenol, com poderes adstringentes e germicidas. Além disso, tem a capacidade de diminuir a pressão arterial. Outras vitaminas contidas na folha de caqui se infiltram no arroz, potencializando-a.
Na obra de Tanizaki, a descrição é sobre o kaki-no-ha-zushi de salmão. Mas é comum os de cavala e pargo cozidos, e até mesmo de cogumelo shiitake.
Ah: normalmente não se come a folha, embora alguns gostem. Come-se apenas o conteúdo, que depois de um dia, já absorveu todas as propriedades da folha.
E para quem quer conhecer a região de Yoshino, famosa pela densidade e esplendor das suas cerejeiras em flor, a editora Companhia das Letras lançou também o livro Kuzu, do mesmo Tanizaki.
Leiam aqui, o trecho sobre o kaki-no-ha-zushi, em Em Louvor da Sombra.
“Dias atrás, o jornalista que me entrevistou pediu-me que comentasse a respeito de pratos diferentes e saborosos. Eu então lhe falei do sushi feito de folhas de caqui – especialidade dos habitantes das remotas regiões montanhosas de Yoshino – e também da maneira de prepará-lo. Aproveito a oportunidade para revelar a receita aos meus leitores: para cada dez de medidas de arroz, uma de saquê deve ser acrescida no momento em que o arroz entrar em ebulição. Depois de pronto, deixe o arroz esfriar completamente e, em seguida, espalhe sal na palma das duas mãos, aperte o arroz entre elas e forme bolinhos compactos. Nesse momento, é imprescindível que a mão esteja totalmente seca. O segredo é fazer os bolinhos só com a ajuda do sal, sem molhar as mãos. Depois, estenda sobre os bolinhos fatias finas de salmão levemente salgadas, envolva cada conjunto com uma folha de caqui com a face superior em contato com o sushi. Na medida do possível, é preciso retirar a umidade tanto da folha do caqui como das fatias do salmão com um pano seco. Em seguida, os bolinhos deverão ser acondicionados numa tina rasa de madeira – do tipo usado no preparo do sushi – ou numa vasilha de arroz, apertados uns contra os outros de maneira a não deixar espaço entre eles, e sobre o conjunto deverá ser posta uma tampa de madeira. Uma pedra de bom peso, do tipo usado para fazer picles, deverá ser assentada sobre a tampa para pressionar o sushi. Preparado à noite, estará pronto para ser degustado na manhã seguinte. No decorrer do dia, o sabor se manterá ideal mas continuará comível durante mais dois ou três dias. Molhe folhas de pimenta-d’água em vinagre e borrife sobre o sushi no momento de servi-lo. A receita me foi passada por um amigo que esteve em Yoshino, mas pode ser preparada em qualquer lugar. (…) Experimentei fazê-lo em casa e concordei com meu amigo: esse sushi é excepcionalmente saboroso. O sal e a gordura do salmão impregnam-se de maneira ideal no arroz e o peixe fica irresistivelmente macio e fresco. Achei esse sushi muito diferente dos de salmão que costumo comer em Tóquio, e tão mais gostoso que vivi dele o verão inteiro. Admirei o jeito diferente de consumir o salmão e a criatividade dos habitantes das regiões remotas e montanhosas carentes de tudo. E ao pesquisar sobre especialidades típicas de diversas regiões interioranas, descobri que seus habitantes têm paladar muito mais apurado que os moradores dos grandes centros urbanos. Num certo sentido, isso significa que eles vêm se banqueteando com iguarias cujo sabor não conseguimos sequer imaginar.”
EM LOUVOR DA SOMBRA, TANIZAKI Junichiro
Editora Companhia das Letras Tradução de Leiko Gotoda
A VIDA SECRETA DO SENHOR DE MUSASHI | KUZU, TANIZAKI Junichiro
Editora Companhia das Letras, Tradução de Dirce Miyamura