Haikai, um romance de Cássia Penteado

O título pode até sugerir um livro de poemas, mas é na verdade, um romance, onde os haicais de Matsuo Bashô são encaixados incidentalmente, como notas musicais em uma trilha sonora de um filme, criando uma ambientação literária subliminar. Lembra muito aqueles trechos em latim, em “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco. Pura música em forma de letra. 

Haikai conta a história de Chiara, uma aspirante poetisa de haicai que se muda para a cidade de São Francisco Xavier, na Serra da Mantiqueira, na busca por uma vida mais próxima da natureza, onde possa se inspirar para compor seus poemas. Para manter-se, vai morar na fazenda do senhor Murakami, um produtor de cogumelos, que vive com o filho de 8 anos, cuja mãe, Sayuri, ceramista, nascida e criada no Japão, em Kyoto, encontra-se internada em uma casa de repouso. 

Dividido em 4 partes, primavera, verão, outono e inverno, o livro vai, aos poucos, descortinando a história da vida de Sayuri. Do nascimento em 1976, até seus 21 anos, quando vem para o Brasil, prometida como noiva de Murakami.

Como pano de fundo, Haikai nos leva a um passeio pela história e pela cultura japonesa, passando pela gastronomia, a arte da cerâmica, a política e os costumes orientais. Essa viagem no tempo e no espaço pelos signos japoneses inevitavelmente nos faz lembrar de “Os Sete Afluentes do Rio Ota”, de Robert Lepage, roteirista e cineasta canadense. Mas enquanto Lepage é todo épico em seu discurso, Cássia nos brinda com passagens compactas, econômicas e sutis, como pinceladas de suibokuga, a arte da pintura a nanquim. 

O olhar da autora de Haikai é célere, detalhista, delicadamente perspicaz e acima de tudo, sugestiva, o que, irrefutavelmente envolve o leitor a identificar-se com os personagens, nos dois países em questão, trazendo pela arte literária tom, cores, sabores, marcas, receita de prazer que aguçam os sentidos, numa verdadeira experiência de imersão na cultura nipônica. O que é mais curioso é que a autora ainda não conhece o Japão. No entanto, suas descrições de ambientação e situações onde os personagens são inseridos são absolutamente corretas, muito longe de estereótipos, fruto de uma pesquisa atenta e apaixonada pela cultura. 

Haikai tem a chancela de Telma Shiraishi, Chef do Restaurante Aizomê, Embaixadora da Gastronomia Japonesa no Brasil e da ceramista Hideko Honma, Atelier Hideko Honma. Além de colaborarem para a formação do conteúdo, também apresentam esta obra.

A Capa e ilustrações internas, a arte haiga deste Haikai, couberam à artista visual e desenhista, Mika Takahashi, 29º Troféu HQ Mix na categoria Novo Talento (desenhista), em 2017, com o seu romance gráfico Além dos Trilhos. Mika ilustrou ainda outros livros, como Maria Antonieta e o Gnomo, da escritora Índigo (V&R Editoras), Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, quando aceitou o desafio de recriar as ilustrações originais de John Tenniel. 

Assim começa o Verão…. Ilustração: Mika Takahashi

Sobre a autora:  Cássia Penteado é advogada, escritora e tradutora. Foi colaboradora do jornal Diário da Região, em São José do Rio Preto. É autora das peças de teatro infantil, O Coelhinho Joca e A Verdadeira História do Meu Computador, com as quais conquistou dois prêmios no Festival de Teatro de São José do Rio Preto. Estreou na literatura com o romance EntreMeios (Editora Reformatório, 2018). Em 2019, participa como poema Cenas da Antologia de Poesia Contemporânea, Além da Terra, Além do Céu Volume IV (Editora Chiado). Em 2021, participa da Antologia 2020, O Ano Que Não Começou. (Editora Reformatório), com o conto 2020, o Ano do Rato que o Vírus Roeu.

Telma Shiraishi, Hideko Honma, Mika Takahashi e Cássia Penteado – quatro mulheres traduzem em Haikai  a delicadeza e a força da vida que pulsa no Oriente e no Ocidente do Globo Terrestre.

Lançamento: A sessão de autógrafos acontece no dia 18 de novembro de 2021 no restaurante Kurâ Izakaya – Rua Valério de Carvalho, 63 em Pinheiros, São Paulo. 

Ficha técnica:
Haikai

Autora: Cássia Penteado
Editora: Reformatório
Número de páginas: 102
Formato: 12 x 19
Preço de capa: R$ 39,00
Contatos: (11) 94292-7135  c/ Marcelo – info@reformatorio.com.br   www.reformatorio.com.br

Uma história sobre a história, e meus agradecimentos

Durante o intervalo, na escola, meus amigos diziam que se fizéssemos um buraco bem fundo, passaríamos pelo centro da Terra e chegaríamos ao Japão. Olhava para as minhas mãos pequenas, para o chão de pedregulhos do parquinho e já as primeiras barreiras pareciam intransponíveis. Devia ter outro meio de chegar lá. Eu não desisti.Depois foi a vez do meu pai; Sergio Rubens Penteado Manente que, na volta do trabalho, passava pelo Bairro da Liberdade e trazia kamaboko, naruto, chikuwa, massa de peixe de formas diferentes, que comíamos com cebolinha, shoyu e Aji-no-moto. O sabor, o aspecto, o colorido, a forma como vinham embalados, o desenho das letras do kanji impresso na embalagem distinguiam-se de tudo para mim. Meu pai gostava de gastronomia e como um bom italiano, fazia molhos especiais, receitas da Sophia Loren para a pasta; e na panela elétrica, fazia sukiyaki. Nessa mesma panela, Yumi Arima, amiga desde a época de Direito na PUC, fez um sukiyaki com sotaque autêntico japonês. E desde então, eu interrompo o trabalho dela inúmeras vezes ao dia, para perguntar detalhes da cultura, da gastronomia e da história do Japão.

Chikuwa e Kamoboko, massas de peixe, receitas tradicionais da culinária japonesa. Fotos: Canva. 

Ensaiei ir para o Japão algumas vezes. Numa delas fomos almoçar, o senhor Shoei Arima, 83 anos, pai da Yumi, ela e eu. Ele antes nos levou à uma agência de viagens, aconselhou sobre o roteiro, o tempo de estada, a época do ano; depois fomos ao Consulado Japonês onde ele me apresentou e recolheu alguns folhetos e me entregou. Na rua, Yumi e eu tínhamos que correr para alcançá-lo. Almoçamos no Suntory, que ficava na Alameda Campinas, e foi o senhor Shoei quem determinou o que eu comeria. Às vezes, a Yumi tinha que traduzir nossos diálogos. Antes de nos despedirmos, o Sr. Arima disponibilizou seus contatos no Japão e posou conosco para uma fotografia. Mas, não consegui ir ao Japão daquela vez.
Eu já havia lançado meu primeiro romance, EntreMeios e buscava algo de apaixonante sobre o que pudesse me debruçar para contar outra história. Cheguei no Pomar da Vila no momento em que um rapaz descarregava inúmeras caixas de cogumelos. Tinha champignon, shiitake, shimeji, os mesmos que eu via toda semana, no mesmo lugar, mas desta vez pareciam ainda mais maravilhosos! Saltavam aos olhos como os objetos japoneses na casa da minha vó. Foi então que tive uma epifania provocada pelos cogumelos. Implorei ao rapaz que me desse um cartão. Eu precisava saber mais sobre aqueles cogumelos. Queria visitar e conhecer o produtor, saber dos processos de produção, etc, etc, etc. O rapaz me deu um cartão. Corri para casa. Entrei no Google, e descobri que era uma empresa enorme. Os cogumelos brotavam num laboratório, em um imenso laboratório… Algo urbano demais, não era o que eu procurava. Não estava interessada na tecnologia japonesa, mas sim na produção artesanal. Eu tinha uma fantasia de cogumelos e florestas, o cultivo com toda calma e sabedoria oriental. Então continuei procurando até me deparar com uma fotografia antiga, desbotada, de um senhor japonês sentado à mesa de jantar, com uma criança à sua frente, e uma travessa de shiitake. Cliquei no link da fotografia, era Carlos Abe, produtor de cogumelos e consultor, pioneiro da cidade de São Francisco Xavier.
Ronaldo Eberhardt, meu cúmplice, e eu tínhamos acabado de voltar dessa cidade pela qual nos apaixonamos e prometemos retornar. Coincidência?
No link, tinha também o número do celular de Carlos. Liguei. Ele atendeu, e eu expliquei que queria escrever um livro sobre cogumelos. Marcamos um horário para conversarmos por Skype. E, desde então, gentilmente, ele passou a me conceder todas as informações que precisava. Veio também o convite para conhecermos a Fazenda Guirra, e lá vi de perto muitas das coisas que contei neste livro.


Envolvida que estava com a cultura e a gastronomia japonesa, numa noite qualquer, eu e Ronaldo jantávamos no Sushi Kenzo, no Bairro da Liberdade, quando percebi que as cerâmicas onde serviam os alimentos eram um escândalo de beleza e elegância. Outra epifania fez com que eu interrogasse Tina, a moça que nos atendia no restaurante, e ela me passou o contato de Hideko Honma. No dia seguinte liguei para o Atelier e agendei uma entrevista com Hideko. Aguardei ansiosa pelo dia.

Entrada do Kenzo Sushi, no bairro da Liberdade, em São Paulo Foto: Rafael Salvador
Detalhe de peças no Atelier Hideko Honma Foto: Rafael Salvador

No Atelier Hideko Honma, tive a sensação de passar por um portal, um Torii que me conduziria ao Japão. De Hideko emanava a delicadeza, a arte oriental. Ela me iniciou no universo da cerâmica, no colorido dos esmaltes que produz a partir de cinzas vegetais. Era como se aquela névoa que me afastava do Japão começasse a se dissipar e, estranhamente, a xícara de café moldada por Hideko, se encaixava suavemente em minhas mãos.

Nessa pesquisa por cerâmica e esmaltes, conheci Ruben Alekxander Pella, especialista em esmaltes; que me levou ao Tapir Atelier de Cerâmica com Sirlene Ginotti, onde tive outra imersão nesse assunto complexo, do qual eu não sabia nada. Conheci também as mulheres ceramistas de Minas Gerais, a cerâmica indígena, mas estava decidida que a cerâmica para o livro seria mesmo a oriental. Alekxander e Sirlene me indicaram alguns livros, e por meses os perturbei para me esclarecerem dúvidas sobre esmaltes e o tal feldspato, palavra pela qual me apaixonei.
Na Japan House, descobri a Aliança Cultural Brasil-Japão. Liguei e expliquei que escrevia uma história que se passava no Japão, precisava conversar com alguém que pudesse me falar mais sobre a cultura e a história desse país, alguém que pudesse me orientar nas pesquisas. A coordenadora da Aliança Cultural, a professora Alice Sanae Tsuchiya me atenderia. Marcamos uma reunião para março de 2019, eu e Ronaldo planejávamos a tal viagem para o Japão, então, veio a pandemia. Vi o chão de pedras do parquinho novamente se estampar na minha frente, mas não desisti.
Eu tinha um começo da história escrita, que não dava ainda nem um capítulo. Fazia pesquisas, entrevistas. Lia tudo sobre o Japão. Travei com o medo e a tristeza que esse vírus causou. Ronaldo se mudou para minha casa, e juntos fomos enfrentando os obstáculos e encontrando outros meios de fazer nosso trajeto viável.
Fiquei meses tentando me concentrar em leituras sem conseguir escrever. Até o dia em que passeando pela internet, assisti um vídeo sobre literatura do Marcelino Freire, e descobri que a sensibilidade dele, seu entusiasmo, era mais contagiante que qualquer vírus. Acompanhada de outros escritores, de diversas partes do mundo, participei de uma oficina de escrita orquestrada pelo Marcelino. Durante a oficina, Haikai foi ganhando espaço no meu computador e na nossa vida. Foi Marcelino quem me disse que eu estava escrevendo o primeiro haicai em prosa.
De volta às pesquisas, me encanto pelo Forno Noborigama, (escrevo em maiúscula porque para mim é nome próprio), um forno japonês que aqui no Brasil existe em Cunha, importante polo ceramista no interior de São Paulo. Descubro o Marcelo Tokai, do Atelier Tokai. Liguei para ele. Marcamos um horário e tivemos uma primeira conversa de muitas. Me tornei amiga da Luciane Yukie Sakurada, mulher do Marcelo, ambos ceramistas talentosos, gentis e donos do Bar Blackfin, um tipo izakaya; o melhor restaurante de Cunha! Sim, fomos para lá, Ronaldo e eu, no final de junho, porque o Atelier Suenaga & Jardineiro, da Kimiko Suenaga e do Gilberto Jardineiro, (eu já entrevistava Kimiko via whatsapp), faria uma abertura de fornada do Forno Noborigama! Um espetáculo!

A autora, em visita à cidade de Cunha, onde conheceu os fornos Noborigama. Na foto, lavandário de Cunha.
Foto: arquivo pessoal

Liguei para o Giltaro Jardineiro, ceramista também, filho da Kimiko e do Gilberto, que além de me conceder entrevista, permitiu que Ronaldo e eu estivéssemos lá presenciando esse evento mágico, que costuma aglomerar multidões; mas naquele dia, devido à pandemia, apenas os ceramistas, a TV Bandeirantes, Ronaldo e eu. Éramos dois alucinados testemunhando um momento histórico, inédito em nossa vida. Documentamos, fotografamos, admirados do que víamos. Eu retirei deste forno mágico uma caneca ainda morna. E Ronaldo escolheu um prato para enfeitar a entrada da casa de Aldeia.
Fomos antes recebidos em entrevista exclusiva com Kimiko e Jardineiro, seu companheiro brasileiro, que encontrou no Japão o amor e a arte. Vindos de Tokyo, nos anos 70, entraram no Brasil via Manaus, descendo o Rio Amazonas. Kimiko trazia um filho no colo e outro no ventre. Foram para Cunha e construíram um Forno Noborigama. Ele nos contou uma história de vida que merece um livro à parte. Voltamos para São Paulo, quatro dias depois, completamente apaixonados pela receptividade dos japoneses ceramistas.
Então, enquanto escrevia a cena do jantar em Kyoto, a Yumi me falou: “Cássia, no Japão tem uma alta gastronomia que não existe no Brasil.” Desde então, eu queria conhecer. Queria conhecer tudo, e escrever. A professora Alice, da Aliança Cultura Brasil-Japão, corrigia minha grafia das palavras em japonês e me ajudava na pesquisa da cultura. E depois de escrever, eu lia para ela alguns trechos. Minha história estava aprovada, já sobre gastronomia, a Sra. Alice disse que não poderia opinar, por isso, me passou o contato de Jo Takahashi, autor e produtor de livros e projetos sobre arte, cultura e gastronomia do Japão. Se eu já estava apaixonada pelos japoneses, passei a amá-los, porque Jo é todo amor. Primeiro me presenteou com seus livros/obras de arte, A Cor do Sabor – A culinária afetiva de Shin Koike e Izakaya – por dentro dos botecos japoneses. Fontes de múltiplos ensinamentos e, novamente, de beleza e elegância. Foi Jo quem me colocou em contato com a Chef Telma Shiraishi, Embaixadora da Gastronomia Japonesa e chef dos restaurantes Aizomê. Ela me concedeu entrevista, me emprestou livros do chef Japonês Yoshihiro Murata, onde pude pesquisar sobre a refeição kaiseki de Kyoto, e de quebra, ela ainda corrigiu meus deslizes.
Jo – enorme privilégio meu – não largou mais da minha mão. (ou eu não larguei da dele). E desde então, durante a escrita do livro, não decidi nada sem a benção dele.
E por falar em arte e beleza, também pelo Jo, descobri a artista visual, ilustradora, quadrinista, Mika Takahashi, sua filha. (Que família talentosa!) A ela coube a capa e as ilustrações deste meu Haikai. Passei também pelo crivo da poeta Regina Gulla. Tudo o que eu escrevia, lia em voz alta para ela. Haikai pronto, faltava passar pelo crivo do meu editor, Marcelo Nocelli, da Editora Reformatório. Era um momento de bastante expectativa. Alguns dias depois do envio, Marcelo respondeu assim: “Olá. Boa tarde. Acabei de ler sua pequena obra prima…” Era mais do que eu esperava ouvir. Marcelo também passou o original para leitura do editor Jiro Takahashi, que além de nos dar a ideia do glossário, também fez algumas sugestões.
Então, para mim um momento tenso: a fotografia! Coube a Manuela Penteado Valente, minha filha Manu, pacientemente me enquadrar nas lentes de sua máquina fotográfica.  


Agora escrevo estes agradecimentos no momento em que ainda não decidimos onde lançaremos Haikai, a data também é uma suposição ainda. Mas, até agora, o que posso dizer é que Haikai nasce assim, no colo dessa família diversa e numerosa, regado de amor.
A todas estas pessoas, meus agradecimentos.
O amor é a nossa forma de resistência à qualquer opressão.

 

                                                                                                                                                                                                                                           Cássia Penteado

 

 

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