
O Ministro Conselheiro Alexandre Vidal Porto é um diplomata sui generis. Formado em Direito, pela Harvard, e lotado na Embaixada do Brasil em Tokyo, é também autor. Escreveu e publicou “Matias na Cidade” (Record, 2005), e atualmente finaliza o seu segundo romance, “Silvio S. vai à América.” Além de ficção, gosta de escrever sobre questões sociais e de traduzir poesia. Como diplomata é frequentemente deslocado para novos lugares, mas o Ministro Alexandre Porto tem um quê de Indiana Jones, e como um arqueólogo urbano vai desvendando os novos códigos da cidade, com o tato e a sensibilidade. Em Tokyo, em poucos meses, já estava familiarizado com a monumental rede de transporte urbano, e como bom gourmet, ele pode, hoje, dar as melhores referências de onde se come bem nessa cidade cheia de camadas, e diga-se, ótimas opções gastronômicas. “Se você quiser saber onde servem a melhor pizza de Roppongi, pode me perguntar que eu sei”, orgulha-se. Escreve o blog Elemento Estrangeiro, para a revista Bravo, da editora Abril. É deste blog que reproduzimos, com a devida autorização do autor, a matéria a seguir, que é muito oportuna nestes momentos em que o arrastão virou moda em São Paulo e ocupa os noticiários praticamente todos os dias.
Jantar com medo de arrastão não é normal.

O escritor australiano Peter Carey, que ganhou duas vezes o prêmio Booker de literatura, publicou em 2005 um livro sobre uma viagem que fez a Tóquio com o seu filho de doze anos. O título do livro foi traduzido em português como O Japão é um lugar estranho (Wrong about Japan). Carey estava certo. O Japão é estranho mesmo. Mas é justamente essa estranheza que faz a vida de um estrangeiro aqui gratificante.
Por conta de minha profissão, morei fora do Brasil parte considerável de minha vida. A esta altura, acho que a melhor coisa na condição de estrangeiro é a possibilidade de viver experiências que não seriam possíveis em nossos países de origem. Aproveitar um momento insólito da existência, que, como nacionais, não poderíamos ter. No Japão, tenho essa sensação repetidas vezes. Algo como usar uma roupa que não nos pertence por uma noite.
Para muitos, Tóquio é a capital gastronômica do mundo. Os restaurantes da cidade têm mais estrelas no guia Michelin que os de Paris, Londres e Nova York somados. Eu sempre gostei de comer. Sabendo disso, logo que cheguei, comprei um guia Michelin e resolvi passá-lo em revista. Então, como não poderia deixar de ser, a primeira experiência insólita que tive no Japão foi engordar. Eu sempre fui magrelóide, mas em Tóquio comecei a ter, com uns dez anos de atraso, uma experiência que o resto da humanidade já tinha, mas que era desconhecida para mim: aqui se come e aqui se engorda.

A maneira que encontrei de combater, ainda que psicologicamente, minha potencial obesidade foi comprar uma bicicleta. Uso-a na maioria de meus deslocamentos pela cidade. Especialmente para restaurantes. Neste fim-de-semana passado, não foi diferente. Jantei com dois casais de amigos em um restaurante francês chamado Les Chanterelles, que fica a uns seis, sete quilomêtros de minha casa, do outro lado do Parque Yoyogi. Pedalei todo o percurso de ida e volta.
O jantar foi ótimo. Saí do restaurante perto de meia-noite. Aí sim tive a minha experiência estrangeira especial pedalando minha bicicleta pela noite tranquila de Tóquio, sem preocupação nenhuma. Cruzei todo o Parque Yoyogi, sozinho. De vez em quando via um casal conversando enamoradamente em um banco. Eles não se preocuparam comigo, nem eu com eles. Passei por umas outras duas bicicletas e umas três pessoas andando pelo parque a caminho de algum lugar.
Com o vento da noite batendo em minha cara, pensei que, infelizmente, pouquíssimos brasileiros de minha geração teriam a oportunidade de, como eu naquele momento, voltar de um jantar com amigos pedalando suas bicicletas despreocupadamente, sem pensarem em assaltos, arrastões ou coisas do gênero. Perguntei-me quantos brasileiros poderiam aproveitar as cidades em que vivem, sem temor de qualquer ameaça além de uma queda ou um buraco no asfalto.
Aí voltamos ao começo. Como estrangeiro no Japão, eu sou capaz de ter essa experiência, que já não posso ter no Brasil -mas que deveria poder. A gente acaba achando normal ser assaltado, desrespeitado, ameaçado, e aceita conviver com todo tipo de incômodo urbano. Acaba pensando que isso é da vida, que é o preço a pagar para viver em cidade grande. Mas não tem de ser não. As coisas podem ser diferentes, e é essa a lição que eu levarei do Japão.
Morar em Tóquo deixa claro que nossas cidades poderiam funcionar melhor e serem mais agradáveis. No século passado, esta cidade foi destruída completamente. Não uma, mas duas vezes. Em 1923, sofreu um terremoto devastador e, na Segunda Guerra Mundial, foi reduzida a cinzas pelos bombardeios que a atingiram. Ainda assim se reergueu e se reinventou.
Se os japoneses restauraram uma cidade devastada, nós brasileiros também podemos restaurar as nossas. Para tanto, temos que readquirir a noção de que jantar com amigos e voltar para casa de bicicleta sem ter medo de ser arrastado ou assassinado é uma coisa normal, a que os cidadãos têm direito. Temos de nos convencer que anormal é ter de andar pela cidade como quem anda por uma selva ou uma zona de guerra, temendo ataques de animais selvagens ou fugindo de balas perdidas, que nos ameaçam, sim, mas que não precisariam exisitir.
Abaixo, video de concentração de ciclistas em Tóquio na véspera do Natal. Filmado por por Will Goodan, música de DJ Krush (Big City Lover).
Veja aqui as outras matérias do blog Elemento Estrangeiro.