Herdando do antigo Suntory a suntuosidade de um templo da alta gastronomia, o Shintori se despede da cena gastronômica de São Paulo. Foi durante décadas uma referência de qualidade na arte de bem servir o verdadeiro washoku.
O palácio gastronômico coberto com tapume surpreendeu os transeuntes da Alameda Campinas, em São Paulo, no início deste ano.
Mais de 40 anos de história
Em 2014, o Shintori completava 40 anos de história. Uma trajetória que se iniciou com a fundação do antigo Suntory, em 1975, numa época em que a cozinha japonesa em São Paulo estava ainda limitada aos redutos da comunidade nipônica.
A construção do Suntory, na região da Avenida Paulista, em São Paulo, patrocinada pela mesma Suntory mundialmente conhecida pelo seu excelente uísque e licores, inaugurou uma nova fase na expansão da gastronomia japonesa. Seu prédio imponente, inspirado na arquitetura clássica japonesa, com o mais belo jardim japonês da metrópole, passou a oferecer aos paulistanos uma culinária que virou sinônimo de requinte. Também inovou no conceito de servir. Para começar um imponente bar, com uma vista deslumbrante do jardim, era o local de espera onde os clientes podiam escolher onde irão fazer as refeições. Havia salões especiais para teppan, equipados com poderosas coifas que não deixavam o ambiente defumado. O salão destinado ao kaiseki tinha um vistoso sushi bar. E ambientes apropriados para o shabu shabu e o sukiyaki. Para uma reunião mais fechada, como a celebração de negócios, nada melhor do que as salas de tatami que garantiam total privacidade. E no andar superior, um amplo salão para festas e confraternizações. Garçonetes de quimono deslizavam pelos salões, silenciosamente, exalando uma austeridade aristocrática.
Quanto à gastronomia, a qualidade sempre foi irretocável. No início vieram chefs do Japão, exigência da matriz. Mas logo se juntaram chefs brasileiros, que aprenderam a manter a mesma qualidade do início do empreendimento.
Nancy Saeki recebeu Jojoscope e Hashitag no final de 2014 para esta entrevista.
Tudo isso terminou no final de 2015, quando o templo da gastronomia japonesa fechou definitivamente suas portas, devorada pela especulação imobiliária e a dificuldade de manter o padrão e as dimensões do empreendimento, às vésperas de uma crise econômica.
O antigo Suntory foi fundado em 15 de Setembro de 1975. O restaurante era para ser uma propaganda das bebidas Suntory, mas foi na alta gastronomia que ele se impôs de maneira definitiva. Foi lá, definitivamente, que o kaiseki, a mais requintada das refeições japonesas, servida em etapas, tomou-se uma realidade para os brasileiros.
Nancy Saeki, sócia-proprietária do Shintori até seu derradeiro momento, relembra que seu pai, e depois ela também, eram os advogados do Suntory e acompanharam toda a evolução da casa. No entanto, com o passar do tempo, a Suntory perdeu o interesse em dar continuidade a este segmento gastronômico. Em 2004, quando a Suntory resolveu vender o empreendimento, a família Saeki, juntamente com a família do ex-ministro de Minas e Energia, Shigeaki Ueki, decidiram arrematar a casa, com o propósito de manter a sua arquitetura e dar continuidade à história do restaurante, que eles consideravam um patrimônio da cidade.
O novo nome, Shintori, veio com a ideia de um “novo pássaro”, mas também “o mesmo pássaro”. A ideia era manter não só toda a tradição, mas também todos os empregados, bem como a integridade do cardápio. Foi uma operação para preservar a forma e o conteúdo do restaurante.
A transição foi absolutamente natural. No final de 2004, o presidente em exercício da Suntory passou o negócio para os novos donos, que tiveram um mês para se inteirar da administração.
Antigos colaboradores, como Darci, o barman
Portanto, além dos 40 anos da casa, comemorava-se também os 10 anos da nova gestão, agora sob a liderança de Nancy, formada em Direito com pós-graduação em Marketing. “Aproveitei tudo o que aprendi na escola”, diz orgulhosa.
Orgulho mesmo, segundo a Nancy, é que a maioria dos funcionários da época da Suntory foi preservada em sua gestão. Alguns, inclusive, até mais antigos que o restaurante, porque trabalharam na construção da casa, e depois foram incorporados ao quadro funcional do restaurante e continuaram até o fim, na manutenção do estabelecimento. Este sim, é um patrimônio humano que Nancy fez questão de preservar.
Tocada por 70 funcionários, o estabelecimento funcionava como empresa. A sintonia com as lideranças do vários departamentos foi fundamental para Nancy. Também a presença constante dos sócios, para que se evitassem desperdícios, que são uma decorrência fácil nos restaurantes, se não houver uma atenta administração dos donos.
Nestas quatro décadas, Nancy ressalta que não houve diminuição do número de funcionários. Isso reflete no padrão de atendimento e no serviço que o Shintori ofereceu aos paulistanos até o seu final.
Jardim japonês
O majestoso jardim japonês, que recebeu os clientes logo à entrada, era o cartão postal do restaurante. O projeto original foi concebido no Japão, e construído conforme os procedimentos do paisagismo japonês. De lá veio a maioria das plantas que ornamentam o jardim, bem como os primeiros jardineiros que cuidaram de sua implantação. Quem cuidou do jardim até o seu final foi aquele funcionário mais antigo da casa, que trabalhou na construção do edifício. Ele foi o responsável pela manutenção não só do restaurante todo, mas especialmente do jardim, cuidando da rega e da poda das árvores.
O jardim japonês que foi referência em São Paulo.
O melhor lugar para vislumbrar esta preciosa paisagem era o bar, a sala de espera do restaurante, com pé direito alto e uma enorme cortina de vidro, sempre impecavelmente transparente.
Chapa
Israel de Oliveira completou mais de 30 anos de casa.
Um dos destaques da casa era o salão de teppan yaki. Lá os pratos eram preparados numa imensa chapa quente de aço, à vista dos clientes, e observar cada etapa de preparação do teppan yaki era uma especial diversão. Aqui também, cozinheiros experientes comandavam as mesas. Foi o caso do chapeiro Israel de Oliveira, 30 anos de casa, que manejou com maestria as espátulas e facas com as quais preparava os teppan yaki de carne ou frutos do mar, sempre finalizados com um espetacular yakimeshi, arroz na chapa, com ovos e legumes delicadamente picados.
Perfil da clientela
Executivos adoravam almoçar no Shintori e aproveitavam para fazer reuniões de trabalho, e muitas vezes, fechar negócios, pois o ambiente era muito próprio para celebrações. Um item favorável a estes encontros profissionais era a distância entre as mesas, que favorecia a discrição. A acústica boa, tão raro nos restaurantes, proporcionava conversas tranquilas mesmo com a casa cheia. Os garçons eram instruídos a não interromperem as conversas de trabalho. Ajudava também a boa localização e um estacionamento fácil e gratuito. Apesar destes itens que agradam o empresário, Nancy ressalta que a arquitetura proporcionava um ambiente acolhedor, por causa do emprego da madeira, e o jardim, que podia ser visto de quase todos os ambientes.
O que talvez muita gente não conheça é o salão de festas no andar superior. Lá também imperava um ar de nobreza, e o serviço requintado garantia que os eventos tivessem uma qualidade quase imperial. Apesar desse refinamento, nos últimos anos, o salão de festas era pouco usado, provavelmente devido à crise econômica, que restringiu muito a organização de festas empresariais.
Nos finais de semana, era a vez das famílias se reunirem no Shintori. Eram clientes de antigas gerações, que traziam agora seus filhos. Clientes que retribuíam a hospitalidade com a fidelidade.
Por tudo isso, Nancy Saeki e seus sócios deixam um grande legado para São Paulo. A sofisticação do bem receber, que em japonês é chamado de “omotenashi”, era praticado sem exceção, desde as boas vindas até a apresentação dos pratos. E foi praticado até o último momento de seu funcionamento. Por isso, vai deixar muita saudade e será sempre lembrado como um dos ícones da gastronomia japonesa em São Paulo.
Matéria originalmente produzida para a revista Hashitag.
Fotos: Rafael Salvador, Henrique Minatogawa, Jo Takahashi