Por trás do menu Sol a Sol

Os chefs Jefferson Rueda e Saiko Izawa concederam uma entrevista exclusiva a Jojoscope, revelando detalhes da pesquisa, de onde surgiram as receitas que empolgaram uma legião de curiosos que enfrentaram filas para experimentar esta homenagem gastronômica aos imigrantes japoneses: De Sol a Sol, a cozinha japonesa que nasceu no Brasil, realizada n’A Casa do Porco Bar, de 26 de janeiro a 5 de fevereiro de 2016.

As saudades de Saiko

Saiko preparando o cardápio especial em homenagem aos imigrantes japoneses Foto: Rafael Salvador
Saiko preparando o cardápio especial em homenagem aos imigrantes japoneses Foto: Rafael Salvador

Saiko nasceu em Tokyo e cresceu em Shizuoka. Chegou ao Brasil com 15 anos, aprendeu o português do zero, ao mesmo tempo em que ingressava no colegial. Só de imaginar esse desafio em tenra idade, é admirável o seu esforço. Quanto ao aprendizado da culinária, Saiko revela que não teve uma formação acadêmica. Tudo o que aprendeu veio do berço, da vida no campo, ajudando a preparar as comidas que marcam as estações do ano no Japão. Ela lembrava que até pescava. Essa vida simples junto à natureza está na base do seu trabalho. Por exemplo, o Funa-no-kanroni (鮒の甘露煮), um dos pratos que enfeitam o osechi ryori, a refeição de ano novo no Japão, era uma função de Saiko, desde o seu tempo de estudante no fundamental. Pescava funa, um tipo de carpa, nas férias de verão, a mãe cozinhava e Saiko era responsável por dispor os peixes do mesmo tamanho, para dar uniformidade à apresentação, limpava-os e fazia o shirayaki, para secar. Essa era uma incumbência de Saiko. Colher fuki no tou e outros brotos da estação, também eram função de Saiko. Havia uma ordem para a colheita. “Eu tinha um território para cuidar, achava que tudo era meu”, recorda Saiko, com orgulho. Os avós moravam na mesma casa. Há uma tradição no Japão, de que os velhos devem ser os primeiros a serem servidos com as colheitas da nova estação, pois isso garantiria longevidade a eles. Por isso, Saiko corria para colher os primeiros brotos para oferecer aos seus avós. “Sinto vontade de chorar, lembrando essas passagens”, comenta Saiko. Apesar da saudade, dificilmente Saiko consegue voltar para a terra natal, embora hoje as visitas ao Japão não sejam tão raras. Em suas agendas apertadas, não dá tempo para regressar ao interior. “Mas se eu for colher esses brotos agora, no campo, acho que vou morrer de emoção”, confessa, para mostrar o quão forte são essas lembranças.

Brotos de fukonoto, que Saiko colhia quando era criança.
Brotos de fukonoto, que Saiko colhia quando era criança.

Choque cultural

Aprender tudo de novo com 15 anos provoca um natural choque cultural. “Mas era jovem e curiosa, por isso tudo era novidade para mim”, lembra. Impressionou a jovem em especial, a quantidade de alimentos que havia no Brasil, especialmente as frutas. Há trinta anos, lembra Saiko, só exisitiam laranjas importadas no Japão. “E não comíamos uma inteira”. Saiko estranhou os condimentos japoneses encontrados aqui quando chegou. O shoyu nacional foi o que mais a marcou. “É escuro, de sabor muito forte”, salienta. A cor e o sabor eram totalmente diferentes do shoyu que ela estava acostumada a usar no Japão. Quanto ao missô, a diferença não foi tão nítida. Sua mãe seguiu a recomendação do dono da loja e Saiko aprovou.

Outras duas ausências na mesa: o arroz japonês e o peixe. “Em Londrina, era difícil obter peixes frescos, nem na feira nem no mercado”. A bolonhesa de berinjela, incluída no cardápio De Sol a Sol era um dos pratos que ela fazia, já dona de casa, para o filho. “Não aprendi a cozinhar em restaurantes, e nem tive professor. Por isso, o cardápio montado para este projeto foi baseado em receitas domésticas, muitas delas executadas nos lares dos imigrantes japoneses”, conta Saiko. “Não é um cardápio baseado na kappo cuisine, ou um kaiseki, refeição em várias etapas, empregando diversas técnicas sofisticadas”, revela Saiko. “Por isso me senti à vontade para propor o cardápio”. Os dois eixos que norteiam o projeto: culinária dos imigrantes japoneses e carne de porco, estão presentes em todas as etapas do cardápio. A bolonhesa de porco, ou buta missô era provavelmente preparado nos lares japoneses. O buta shabu, shabu-shabu de porco Saiko fazia em Londrina. Para sua surpresa ela encontrou mioga no Brasil. Uma dádiva dos imigrantes pioneiros, que a plantaram por aqui. Esses ingredientes guardados na memória afloraram neste cardápio, como um novo nascer do sol.

A versão do porco no misso, reinventada para o cardápio De Sol a Sol. Foto: Rafael Salvador
A versão do porco no misso, reinventada para o cardápio De Sol a Sol. Foto: Rafael Salvador

Gratidão, raizes e alma

Gratidão pelos imigrantes. Foto: Rafael Salvador
Gratidão pelos imigrantes. Foto: Rafael Salvador

“Sentimento de gratidão pelas gerações anteriores dos imigrantes, que desenvolveram uma culinária própria”, esta foi a razão da homenagem que o cardápio De Sol a Sol quis render. E até apostou numa tendência: a comida doméstica entrando nos restaurantes. Se alguns pratos que foram sucesso vão entrar no cardápio fixo d’A Casa do Porco Bar? “Nosso chef tem mente aberta para dar atenção a isso, se assim for o desejo dos clientes”, argumenta Saiko. A Casa do Porco Bar segundo Saiko, tem como conceito o uso da carne de porco, preparada de varias maneiras, sem nacionalidade. Nesta nova fase do chef Jefferson Rueda, sai um pouco de cena a cozinha ítalo-caipira, que foi sua bandeira no Attimo, e com o qual ganhou uma estrela Michelin. Há um espaço maior para a Saiko também se expressar na cozinha, para além das sobremesas. “Recebo livros e revistas japonesas de culinária, trocamos ideias”, conta sobre sua parceria com o chef. “Algumas harmonizações de ingredientes, já tinha testado em eventos realizados no Japão”.

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E para o chef Jefferson, este cardápio foi um desafio? Uma novidade? “Provavelmente, sim”, arrisca Saiko. “Os brasileiros dificilmente têm uma conexão direta com o estrangeiro. Eu moro no Brasil mas minhas fontes de inspiração e minhas referências são japonesas. Conheço as tendências de lá. Queria mostrar isso ao Jefferson. Não fazer uma cópia, mas metabolizarmos estas informações e apresentar aos brasileiros. Porque somos autorais. Mas claro, tudo isso, são conversas de bastidor”, revela Saiko.

Raízes, imigração, inspiração.

O que transmitir para as futuras gerações. São temas que afloraram com este cardápio. “O que foi interessante é que essas questões foram emitidas não de um restaurante japonês, mas de um estabelecimento especializado em carne de porco, o que por si, é uma categoria diferenciada. A clientela é formada por curiosos por novidades, com mente aberta para receber um menu autoral sem complicações, doméstico. Muitas das receitas do Sol a Sol são simples, e podem ser reproduzidas em casa, com facilidade”, conclui Saiko. São comidas para a alma. O Ramen por exemplo, presente no cardápio fixo, pode ser novidade para muitos frequentadores d’A Casa do Porco Bar. Mas ao ver as pessoas sugarem todo o caldo, como se estivessem banhando as entranhas da alma, Saiko fica feliz. As raízes agradecem.

Saiko servindo o rámen no dia da festa de abertura do projeto, até as 6 da manhã. Foto: Rafael Salvador
Saiko servindo o rámen no dia da festa de abertura do projeto, até as 6 da manhã. Foto: Rafael Salvador

Jefferson Rueda: raízes, cultura, tradição

Jefferson Rueda abriu sua agitada agenda para receber Jojoscope Foto: Adriana Suzuki
Jefferson Rueda abriu sua agitada agenda para receber Jojoscope Foto: Adriana Suzuki

A conversa com Jefferson começou com uma curiosidade. A cineasta japonês adorava carne de porco. Apreciava em especial, o shabu shabu, feito com carne de porco preto, o kurobuta. Nos dias em que a filmagem saia conforme suas exigências, Kurosawa costumava reunir o núcleo de produção para servir-lhes um autêntico shabu shabu à moda Kurosawa, com apenas dois molhos: um ponzu agridoce, e o gergelim, que é a versão que A Casa do Porco Bar está oferecendo neste cardápio. “Shabu shabu é uma receita dos deuses. Alimenta a alma. É muito saudável, leve, satisfaz e te deixa feliz até mesmo no dia seguinte”. Kurosawa certamente gostaria de ter ouvido isso do chef Jefferson.

Grandes revelações dos bastidores do projeto Foto: Adriana Suzuki
Grandes revelações dos bastidores do projeto Foto: Adriana Suzuki

Há quatro anos, Jefferson começou suas pesquisas, ainda no Attimo, onde consolidou um estilo próprio de cozinha ítalo-caipira e mergulhou fundo nos estudos das raízes gastronômicas do interior de São Paulo. Primeiro a culinária caipira, depois a cozinha dos imigrantes começando com a italiana. E agora, chegou a vez do Japão. Saiko Izawa acompanhou sua saída do Attimo e a convite de Jefferson, mudou-se também para A Casa do Porco Bar. Com essa fonte de referências, ficou fácil para Jefferson fazer imersão na cozinha japonesa. Na verdade, o Japão não é novidade para o chef. Ele confidenciou duas coisas para Jojoscope. Uma que a comida que mais aprecia enquanto não está trabalhando é a comida japonesa. Saindo de madrugada d’A Casa do Porco, ele vai direto para a Liberdade, onde procura um Izakaya aberto. No Kabura por exemplo, adora uma anchova na brasa acompanhado de saquê. Também abriu outro segredo: que já namorou e quase casou com uma japonesa. Adora curry rice, sukiyaki, shabu shabu por conta desse relacionamento. Essa paixão pela comida japonesa contaminou os filhos, frutos do casamento com a chef Janaina Rueda, do Bar da Dona Onça. No aniversário, invariavelmente, as crianças pedem o cathering do Sasaki (Régis Sassaki, sushiman que faz buffets japoneses para festas). Um sucesso. Tanto que os pais dessas crianças também comparecem em peso.

Sushi de papada de porco, do cardápio fixo d'A Casa do Porco Bar Foto: Rafael Salvador
Sushi de papada de porco, do cardápio fixo d’A Casa do Porco Bar Foto: Rafael Salvador

No cardápio fixo d’A Casa do Porco Bar, Jefferson incluiu alguns pratos inspirados na culinária japonesa. Dois deles fazem sucesso: o sushi de papada de porco com tucupi preto, e o rámen, com um caldo fantástico, para sorver até a última gota. Na pesquisa desenvolvida para o cardápio De Sol a Sol, as conversas com Saiko eram frequentes. “Pensamos numa parceria, a Saiko propondo as receitas, e eu iria reinventar. Mas fui entendendo aos poucos. Muita gente fazendo alterações numa coisa que não precisa ser reinventada. Por isso decidi ir para o lado mais purista. Deixar a cultura intacta. Preservar suas raízes. Minha contribuição foi na apresentação dos pratos. Por exemplo, na salada shabu shabu, propus que ele fosse servido num recipiente transparente para mostrar a complexa variedade de verduras que compõe o prato e sugeri que o molho de gergelim ficasse em baixo”.

Rafuty, servido no cardápio De Sol a Sol Foto: Rafael Salvador
Rafuty, servido no cardápio De Sol a Sol Foto: Rafael Salvador

Já na pancetta Rafuty, o toque especial foi dado pela cebolinha tostada no carvão, uma surpresa escondida no fundo da tigela. Para Jefferson, falar de comida é falar de história e geografia. Sem esse contexto de tempo e espaço, impossível pensar na culinária como expressão cultural. Por isso, este projeto do cardápio De Sol a Sol foi mais um esforço do chef para resgatar culturas. Mostrar como é extraído o dashi, o caldo essencial da culinária japonesa, utilizando um sifão para fazer café. Esta inventividade foi também extremamente didática. Até ritualística, quando acompanhamos a água quente subindo e se misturando com o peixe seco, alga kombu, cogumelo shiitake e o presunto desidratado (aqui a intervenção do chef Jefferson) e decantando a essência do quinto gosto do paladar humano. Em 2015, Jefferson completou 20 anos de cozinha. A certeza de que um trabalho consistente vem sendo realizado, para ele, é apenas um ponto de partida. “Fico 15 horas por dia na cozinha, e sei que preciso deixar um legado para as próximas gerações”, comenta sem esconder a enorme generosidade que transparece em seu semblante. Jefferson não consegue esconder também a sua humildade, ao comentar satisfeito essa parceria com Saiko. “Feliz sou eu de poder ter um talento assim trabalhando conosco. Somos opostos, a gente se complementa”. A parceria entre a corajosa audácia de Jefferson com o detalhismo refinado de Saiko ainda vai dar muita liga. Os 120 anos da amizade entre o Brasil e o Japão estão dando os primeiros frutos.

Veja como foi o projeto De Sol a Sol: a cozinha japonesa que nasceu no Brasil.

Veja como foi a festa de abertura do projeto na Love Story: a casa de todas as casas.

o master-chef do sushi, Jun Sakamoto e Glaucia Balbachan, do site Empratado prestigiando o acontecimento Foto: Jojoscope
o master-chef do sushi, Jun Sakamoto e Glaucia Balbachan, do site Empratado prestigiando o acontecimento Foto: Jojoscope
Tsuyoshi Murakami, do Kinoshita também veio experimentar. Foto: divulgação A Casa do Porco Bar
Tsuyoshi Murakami, do Kinoshita também veio experimentar. Foto: divulgação A Casa do Porco Bar
Identidade visual criada para o projeto Porco Love Japan. Tudo condensado na marca: o focinho do porco, o coração e a bandeira do Japão. Não é lindo?
Identidade visual criada para o projeto Porco Love Japan. Tudo condensado na marca: o focinho do porco, o coração e a bandeira do Japão. Não é lindo?
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