A peça Hagoromo ( 羽衣 O Manto de Plumas) é uma das mais clássicas peças do Teatro Nô. Foi escrito por Motokiyo Zeami (1363-1443), principal nome do teatro nô e também o maior artista do período Muromachi (1336-1573). Como dramaturgo, conta-se que escreveu mais de cem peças e como ator, foi um mestre do Nô, a exemplo de seu pai, Kiyotsugu Kan’ami (1333-1384). Seus escritos teóricos sobre o Nô, em vinte e um tratados, constituem uma das maiores obras da literatura japonesa. Apenas para situar o tempo em que Zeami viveu, foi durante a sua vida que foi construído o famoso Kinkakuji, o Templo Dourado, em Kyoto, um dos cartões postais da cidade. Era um período de grande esplendor e profundo refinamento cultural.

Num dia ensolarado, a Tennin é atraída pela beleza da Baía de Miho, nas proximidades do monte Fuji. Distraída pelo esplendor do local, ela retira seu manto de plumas (Hagoromo) e o pendura sobre um ramo de pinheiro. Um pescador que mora nas redondezas, chamado Hakuryô, encontra o manto e se apodera da magnífica peça. Ao perceber o furto, Tennin suplica ao pescador que o devolva, pois sem o manto ela não poderia voar e retornar ao paraíso da lua.
O pescador responde que só devolverá o Hagoromo se a ninfa apresentar uma de suas danças celestiais. A ninfa alega que não poderá dançar sem o manto. O pescador reluta e a contesta, dizendo que, ao recuperar o manto, a ninfa fugiria para os céus sem realizar a dança.
Como as suas forças chegando ao fim, Tennin lhe responde: “Só os homens duvidam. Falsidade não é coisa do céu”. Envergonhado, o pescador lhe devolve o manto de plumas. Feliz por reavê-lo, o anjo realiza então lindas danças de celebração e bênçãos para alegrar a humanidade aflita. Ao final da peça, ela desaparece no céu de forma esplendorosa, tendo ao fundo, o monte Fuji.

Hagoromo – O Manto de Plumas (Editora Estação Liberdade)
Transcriação de Haroldo de Campos
” Transcriação / tradução ” é o termo que o poeta e tradutor Haroldo de Campos adotou para este trabalho. Haroldo recebeu de Darci Kusano, especializada em Teatro Nô, um texto bilíngue do Hagoromo, preparada em parceria com a professora Elza Taeko Doi. Era uma tradução, linha por linha de uma transcriação fônica, uma versão literal na ordem sintática japonesa, e uma segunda versão já normatizada. A tradução completa estava lá, e a partir desta base que Haroldo de Campos criou a sua transcriação. O resultado foi um esplendor de poesia. Um grande haicai, um poema-peça dançado.
Veja alguns trechos selecionados por Jojoscope.
pescador:
sou hakuryô
pescador do pinheiral de miho
acima dos altos
e belos cimos
nuvens céleres se dissipam
a chuva se esvai
ao clarão da lua
sobre a torre
calma estação
o pinheiral espera
a primavera:
a bruma da aurora
sobre as ondas infindas
a lua paralisa a visão
cena que transborda o coração
do memorável céu
inesquecível ! ao meter-se
nos atalhos dos montes –
a baía de Miho
ao paraíso –
juntos iremos juntos
para lá iremos
vemos nuvens ao vento
que se movem similares as ondas
elevando-se do mar
os pescadores retornam
sem pescar ?
…….
tennin:
e agora: sou ave sem asas
querendo voar não posso
sem o manto divino
hakuryô:
aqui é a terra !
– resida entre os homens –
(n)este mundo ínfimo
….
coro:
um florvalhar de lágrimas
como pérolas de cristal
caindo pelos cabelos
grinaldas adornadas
por pétalas de lótus
fenecidas
tentáculos de visão: sobre os olhos do anjo
em declínio
…….
hakuryô:
espere: ouvi sobre as danças angelicais
– o manto te devolvo –
se dançares
tennin:
ah ! grande alegria !
sem tardar
poderei retornar aos céus
para exprimir
a imensa alegria que sinto
dançarei uma dança lembrança
para o vosso
divertimento
em torno do palácio-lua
agora dançarei aos homens
em tormento
mas preciso do manto divino
para bailar
….
hakuryô:
não ! se devolvo-te o manto
voarás aos céus
e jamais dançarás !
tennin:
não há perfídia nos céus
isso é inerente aos homens
….
tennin:
mangas de pétalas
úmidas pela chuva
miúda e fria
hakuryô:
ao som da melodia !
tennin:
dançando !
tennin:
é eterno enquanto dura
– refeito com pedra-jade –
o palácio-lua
coro:
a dança do sol nascente
tennin:
um manto do céu profundo
coro:
um manto arco-íris: primavera
tennin:
cor-aroma
o céu vestido de donzela –
inesquecível !
coro:
à esquerda e à direita
pétalas de lótus ornam
suavemente as mangas
esvoaçam
sinuosas e agitadas –
as mangas dançarinas
baila
o álacre sol nascente
vários bailados
o anjo – cândido –
como a lua no céu limpo
ao fim da segunda semana (a)tinge:
a lua clara bela e rara
vários tesouros-veneráveis chovem
e ao reino dá o manto
guardado à sete-chaves
o tempo passa
assim como o vento –
o manto de plumas
a visão se extravia: cálidocosmos
Ficha Técnica Hagoromo
shite: Ângela Nagai
waki: Yasuyoshi Takeshita
waki tsure: Célio Amino e Roger Muniz
outsuzumi (tambor grande): Shigeru Matsumoto
kotsuzumi (tambor pequeno): Hiroko Yamaguchi
fue (flauta): Masakuni Yamaguchi
ji utai (coro fundamental): Masakuni Yamaguchi Hideyo Isoda Kenjiro Ikoma Kimiko Nagata Michiko Tanaka Yasuko Tanaka Yoji Tsuruta Jun Ogasawara Angélica Figuera Beatriz Sano Luciana Beloli Fernanda Mascarenhas
kouken (direção e assistente): Jun Ogasawara Toshiyuki Tanaka