Com peças de cerâmica criadas pela artista Hideko Honma, exposição resgata a importância da figueira que tombou no ano passado. A árvore foi testemunha de milhares de imigrantes que passaram pela Hospedaria dos Imigrantes, antes de serem encaminhados aos campos de lavoura, no início do século 20.
Em homenagem a uma das figueiras centenárias do complexo da antiga Hospedaria do Brás, o Museu da Imigração – instituição da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo apresenta a exposição temporária “1300° Das cinzas, uma árvore” que fica em cartaz até o dia 30 de janeiro de 2022.
A iniciativa foi idealizada com a finalidade de enaltecer a importância e ressignificar a perda desse ícone que, depois de acompanhar histórias e sonhos de mais de 2,5 milhões de pessoas na Hospedaria e encantar visitantes nos 27 anos de existência do MI, encerrou o seu ciclo de vida no final de 2020.
Visando mantê-la presente nesse espaço, além do Projeto RAIZ (que traz narrações desenvolvidas especialmente para a ação e que podem ser prestigiadas no interior do tronco restante da árvore), foram preservados galhos para que outras possibilidades surgissem a partir deles. Nesse sentido, a artista e ceramista Hideko Honma foi convidada para integrar a proposta.
“As figueiras do complexo do Museu tornaram-se símbolos para colaboradores, migrantes e visitantes, como testemunhas do que foi vivido no passado. Diante da perda dessa árvore, o nosso trabalho se voltou para garantir que tais sentimentos continuassem vivos, o que foi concluído de maneira brilhante pela Hideko”, comenta a diretora executiva da instituição, Alessandra Almeida.
Por meio da técnica japonesa da queima, a profissional transformou as cinzas da árvore em esmaltes, criando 11 garrafas de cerâmica. Dispostas em uma escultura aérea em espiral, as peças poderão ser prestigiadas na curadoria, que também contará com 368 corpos de teste, revelando as diferentes cores e texturas da figueira.
“Cada ser da natureza possui, na sua memória genética e de vida local, uma estética e um lugar na história, que só o fogo trará à tona. O objetivo, além da busca estética, é a documentação do processo para compartilhar resultados e questionamentos com o público frequentador dessa instituição cultural e pública”, reflete Hideko.
No mesmo ambiente, protegidas por um acrílico, estarão amostras das cinzas em estágios variados do processo, bem como um caderno de anotações da artista relacionado a essa produção. Uma projeção de imagens (poema visual) da transformação e os registros do acervo iconográfico do MI – destacando a figueira e os migrantes – também estarão presentes na exposição.
A curadoria coube à artista gráfica Flavia Sakai e ao produtor de conteúdos, Jo Takahashi. Os videos que são projetados no espaço, e que compõem um diálogo com as peças expostas, foram criados por Rafael Salvador e Paulo Barbagli Barbosa. Um intenso trabalho de pesquisa e produção dos esmaltes vidrados especialmente criados para esta exposição foram desenvolvidos pelo engenheiro Agenor Honma.
Um espaço vazio cheio de possibilidades.
Foi o que recebemos do Museu da Imigração para abrigar a instalação artística de Hideko Honma.
Garrafas Árvore, Corpos de Teste, Video Poético, Caderno, Cinzas.
Transformação, Identidade, Legado. E o Tempo.
Localizada no espaço-entre as duas alas que compõem a exposição permanente, a instalação de Hideko Honma aparece em suspensão, como o espaço entre duas notas musicais. Assim é o MA. Este MA, ou espaço vazio, tão presente nas artes japonesas e que aparece também no sobrenome da artista, inspirou a obra de arte e a narrativa espacial, visual e auditiva.
Vazios preenchidos por objetos artísticos, vazios preenchidos pela técnica e pela poesia, vazios preenchidos pela luz, vazios preenchidos por imagens e sons. Vazios preenchidos por conceitos, vazios preenchidos por pessoas vivenciando a experiência estética.
O círculo vazado e iluminado no painel que divide a sala faz referência ao oroboros, a constante evolução da Vida e do Ser, o eterno e infinito Universo.
Suspensas dentro dele, em forma de espiral, as garrafas-árvore, pequenas e quase voláteis, cheias de emoção, sonham ter vida própria.
“Torneio-as com longas pernas para que elas possam locomover-se com autonomia, , mas elas parecerem sempre querer voar. Suas pernas me dão a impressão de que só servem para lhes dar mais ar, impulso, desafio.” – diz Hideko Honma. E complementa: “Dentro do seu grande espaço vazio cabe todo um universo, um universo de possibilidades que só o tempo fará amadurecer.”
Universo dentro e fora. Não há começo nem fim.
A iluminação parece trazer à tona as emoções guardadas dentro das garrafas. De um lado luz, do outro sombra. Somos assim, completos.
O painel divide as duas salas em dois espaços poéticos. Como quem atravessa um portal, o visitante é convidado a explorar e descobrir. O que tem atrás?
Tanoshimi: surpresa! Centenas de corpos de testes coloridos, dispostos em movimento radial, parecem girar no torno, movido pela força das garrafas-árvore ao centro. Estas peças de cerâmicas registram o processo de purificação e eternização da figueira, cinzas transformadas em cores e texturas. Terra, água, ar, fogo – 1300º, eterno retorno.
Vida-morte-vida, processo, não há começo nem fim.
A iluminação nos corpos de teste não mostra tudo, traz um mistério. Texturas e detalhes do processo são revelados na poesia audio-visual.
Dois pontos de luz delicados iluminam perfeitamente as cinzas e o caderno da artista, dispostos em elegantes prateleiras. Simplicidade e sofisticação.
As ideias interligadas, conectadas umas às outras nos remete à poesia Renga, um poema colaborativo que os japoneses praticavam já no século XII e que deu origem à sua forma mais compacta e mais conhecida, o haicai, ou haiku. No início, como é de se supor, a prática da poesia era restrita aos letrados, ou seja, aos nobres da Corte. Com a democratização da educação, a poesia, e mesmo a prática do Renga tornou-se um passatempo popular. É particularmente divertido imaginar que emigrantes japoneses se juntavam no convés do navio, para passarem o tempo compondo versos colaborativos. O desafio não é premiar quem faz a melhor verso, mas sim, compartilhar um destino imprevisível do poema. Algo muito semelhante ao destino destes próprios emigrantes, singrando os mares, em busca de dias melhores.
Adotamos a estrutura do Renga para interpretar as peças criadas pela artista Hideko Honma e compor o espaço áudio-visual, sem, contudo, se prender a uma narrativa linear, nem tampouco à métrica exigida nos haicais. O objetivo do poema é sugerir, de maneira subliminar, uma estrutura semântica à instalação, remetendo a significados universais que permeiam a história de todos os imigrantes, como as lembranças, as memórias, as saudades e as expectativas de um futuro melhor.
Assim, “Raízes para trás”, representa o desprendimento físico dos imigrantes que deixam sua história de vida na terra natal. São como “corpos troncos”, separados das suas raízes. Os corpos troncos vagueiam pelos mares até encontrarem a terra firme que irá acolhê-los.
Há passagens que se inspiram no silabário original da língua japonesa, e que foi criado na era Heian (794-1139). Esse silabário foi possivelmente composto em 1079, segundo os registros mais antigos encontrados até agora. Trata-se de um pangrama perfeito, sem repetição de nenhuma sílaba, e que deu origem ao silabário japonês. Conceitos como “impermanência”, “transitoriedade” e a melancolia da passagem do tempo estão presentes. No poema, “cores-flores que aroma” é uma tradução de dois trechos desse pangrama.
O Renga colaborativo na verdade tornou-se um diálogo íntimo entre a Árvore-figueira, o seu recipiente (o Museu da Imigração), os imigrantes que por lá passaram, e as Garrafas Árvore, a criação de Hideko Honma.
Para a estrutura dramática da instalação trouxemos também inspirações do Teatro Nô, a forma mais clássica das artes cênicas do Japão e a manifestação teatral mais antiga do mundo. O Nô também foi trazido pelos imigrantes japoneses. Ainda hoje, um grupo atua para preservar essa modalidade artística e seus praticantes vão de imigrantes de primeira geração a discípulos não descendentes, mostrando que novas raízes começam a brotar.
No Nô é recorrente o embate ou o encontro de fantasmas com os seres vivos. É o que vai ocorrer nesta narrativa, onde a árvore morta dialoga com os espíritos dos imigrantes que por lá passaram e com a sua forma ressurgida das cinzas, que renasce em forma de garrafas. Morte e vida interagem no mesmo plano, em diálogos entrelaçados. Assim como em “Vazio”, o último capítulo do livro de Musashi, a vida percorre em forma de ciclos e pendulam em espirais.
Flavia Sakai e Jo Takahashi
Texto da Artista Hideko Honma
Garrafas Árvore: uma criação inspirada
O primeiro objeto que todos os ceramistas executam, árdua e repetidamente, durante a sua busca pela boa experiencia e excelência, é o cilindro. Em seguida vem a chawan, bowl, tigela, vaso e todos os tipos de objetos utilitários que tenham como objetivo guardar e servir um conteúdo precioso. Esta é a minha missão: criar objetos receptivos que contenham, acomodem, guardem, aguardem. São receptáculos.
São espaços limitados por paredes de terra, o vazio primordial da natureza, elemento fundamental do ceramista.
Ao finalizar e fechar cada Garrafa Árvore, moldei minha vontade, meu sonho, meu tempo e os encerrei dentro dela.
Neste Projeto, a protagonista, a inspiração é a Figueira centenária do jardim do Museu da Imigração, que no início de 2020, por segurança, teve que ser podada.
Neste histórico museu, instituição onde memórias são oficialmente preservadas, pode-se conhecer a história desta árvore que acolheu com sua copa frondosa, milhões de imigrantes de várias regiões do Mundo. Contingente de riquíssimas esperanças que foram recebidos na antiga Hospedaria dos Imigrantes. A árvore podada foi transformada em um lote composto por troncos, galhos e folhas. Uma parte foi transformada em um punhado de cinzas. Calcinadas e purificadas, foram pulverizadas sobre as garrafas árvore. A 1300°C estas cinzas se transmutam em cor e luz, através de uma técnica que ainda estou aprendendo com os mestres ceramistas do Japão. As primeiras 10 Garrafas Árvore deste projeto são as guardiãs desta memória. Guardiãs do tempo.
Garrafas cilindro
Há duas décadas sigo criando garrafas. Elas habitam os meus sonhos, voam pela minha imaginação e tomam forma enquanto estou com as mãos no barro. Estão presentes no meu cotidiano.
No início eram apenas os obrigatórios exercícios de cilindros. Cilindros de variadas espessuras e dimensões. Cilindros retos, estáveis, honestos, grudados no chão. À medida que as paredes de barro cresciam, o espaço interior vazio também aumentava e rapidamente era preenchido por todas as emoções do meu tempo. Segui então, fechando as superfícies dos cilindros até transformá-los em garrafas de gargalos finos, estrangulados, apertados, quase asfixiados.
Hoje elas são pequenas. Pequenas garrafas, quase voláteis, sonhando ter vida própria. Torneio-as com longas pernas para que elas possam locomover-se com autonomia, , mas elas parecerem sempre querer voar. Suas pernas me dão a impressão de que só servem para lhes dar mais ar, impulso, desafio.
Dentro do seu grande espaço vazio cabe todo um universo, um universo de possibilidades que só o tempo fará amadurecer.
Garrafas com gargalos abertos precisam de tampas.
Tampas com Pegadores
Sempre criei tampas para os meus utilitários do cotidiano. Para os meus bules …
Tampas para os meus pratos. Incomodam-me, os pratos fundos com abas largas completamente destampados. Pratos que chegam à mesa recebendo todos os olhares e cobiças do ambiente. Se a sua passagem for demorada, o conteúdo chega ao destino seco, frio, óbvio. Pratos demasiadamente abertos, desprovidos de pudor, perdidos na liberdade excessiva pedem limites e proteção. E o desafio está em criá-los. Pedem personalidade, textura, vida.
E assim, venho criando pegadores, que em muitas ocasiões confundem-se, fundem-se às tampas. Observo-as hoje sob o ponto de vista estético e constato que a minha inspiração sempre brotou da Natureza e do Tempo. Na terra transformada em argila e na vegetação transformada em cinzas. Na argila transformada em cerâmica e nas cinzas transmutadas em cores e luz. A Natureza e o tempo.
As garrafas também precisam de tampas. Com pegadores, que brotam no topo dessas tampas como as mudas das árvores que nascem em argila fértil.
Hideko Honma, abril de 2021
Serviço
Exposição Temporária “1300° Das cinzas, uma árvore”
Data: 26 de junho de 2021 a 30 de janeiro de 2022
Horário: 11h às 17h (bilheteria até as 16h)
Local: Museu da Imigração
Museu da Imigração
Rua Visconde de Parnaíba, 1.316 – Mooca – São Paulo/SP Tel.: (11) 2692-1866
Funcionamento: de terça a domingo, das 11h às 17h (fechamento da bilheteria às 16h).
R$10 e meia-entrada para estudantes e pessoas acima de 60 anos | Grátis aos sábados
Acessibilidade no local – Bicicletário na calçada da instituição
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