Memórias afetivas dos cinemas da Liberdade

É certo que quem tem menos de trinta anos hoje não faz a menor ideia do que significaram os cinemas japoneses do bairro da Liberdade, em São Paulo, seja como centro difusor da cultura cinematográfica do Japão, seja como ponto de confluência de imigrantes cinéfilos. Mas não só: por conta de uma cinematografia por vezes ousada, e muitas vezes variada e rica em gêneros, esse cinema atraía uma intelectualidade paulistana que lá buscavam referências e inspirações. No próprio mundo do cinema, era comum ver um diretor como Walter Hugo Khouri, Carlos Reichenbach ou Rogério Sganzerla ocupando uma das poltronas dos cines Joia, Niteroi ou Nippon. Ou gente de teatro como Antunes Filho, que se inspirou em filmes de Kurosawa para criar muitas de suas peças, dentre as quais Macbeth. Os poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari também eram frequentadores dessas salas que, enquanto existiram, nunca se deram conta do enorme legado que eles deixariam para algumas gerações que tiveram o privilégio de conhecê-las.

Cine Joia, na praça Carlos Gomes, em São Paulo, originalmente um cinema exclusivo para as produções da Toho, em seus derradeiros meses passou a se chamar Cine Shochiku, exibindo melodramas em sessões triplas. Renasceu agora como casa de espetáculo e baladas, preservando o mesmo nome e marca.

O pesquisador Alexandre Kishimoto reconstitui em seu livro Cinema Japonês na Liberdade, derivado de sua tese de mestrado, com seu sensível olhar de antropólogo, a dimensão social e cultural que estas salas de exibição representaram nos anos 50 e 60. Ele mesmo, sem idade para ter frequentado estes cinemas, recorre a uma série de depoimentos e materiais iconográficos para remontar o imaginário, repleto de samurais, ninjas, princesas e mafiosos da Yakuza. Mas não só. Eram lá também que eram exibidos muitos filmes de arte, de Kurosawa Akira a Shindo Kaneto, passando até pelos indecifráveis filmes de Suzuki Seijun, isto para não falar da Nouvelle Vague japonesa, representada por Oshima Nagisa, YUoshida Yoshishige ou Imamura Shohei. Eram, portanto, estas salas, ricos centros de discussão das ideologias que permeavam na época. Havia um misterioso e imprevisível ecletismo em sua programação, que poderia apresentar, em sequência, um musical com um astro da televisão, um melodrama de arrancar lágrimas coletivas, um filme erótico de fazer cair o queixo a polêmicos filmes de arte que provocavam, estes sim, intermináveis discussões nos restaurantes populares de um bairro da Liberdade mais romântica e menos turística.

Cartazes de filmes japoneses remetem a memórias afetivas.

Cinema japonês na Liberdade é uma tese sem o ranço exacerbado de um estilo acadêmico. É possível fluir pelas perrcepções do passado do cinema japonês no Brasil desde que chegou até nós através de projeções ambulantes no meio rural, por volta de 1926, e aponta, ainda, a repressão do regime de Getúlio Vargas à colônia nipônica na década de 1940, a constante catarse provocada pelos filmes japoneses nos espectadores, a diversidade em gêneros e estilos dessa produção cinematográfica e sua influência na obra de cineastas brasileiros.

O que é surpreendente é que, nos anos 1950, enquanto o resto do planeta descobria e reverenciava Akira Kurosawa e um ou outro cineasta do Japão, o cinema daquele país era amplamente conhecido e vivenciado pelo paulistano. São Paulo chegou a ter naquela década e na seguinte quatro salas de exibição destinadas exclusivamente aos filmes das principais produtoras japonesas. Veja aqui, uma matéria com observações da cineasta Olga Futemma, hoje diretora da Cinemateca Brasileira, sobre os cinemas da Liberdade.

Nos tempos áureos dos cinemas da Liberdade, era comum grandes astros e estrelas virem a São Paulo para prestigiar o lançamento de seus filmes. Na foto, o Cine Niterói, sala exclusiva das produções da Toei. À direita, o casal de proprietários do cinema com o galã Tsuruta Koji.

O livro conta também com prefácio do historiador Jeffrey Lesser e vários documentos e imagens ilustrativas.

 

TRECHOS

A percepção do ritmo lento seria provocada também pela proeminência dos planos gerais sobre os planos de detalhe, pois uma cena decupada em diversos planos apresenta¬se com mais dinamismo do que a mesma observada de um ponto de vista fixo. Donald Richie escreve que, se os filmes norte¬americanos são os mais fortes na ação, e os europeus o são na construção dos personagens, os filmes japoneses são os mais ricos na construção da atmosfera, isto é, em apresentar os personagens em meio àquilo que os cerca.” [p. 111]

“A atualização da imagem do Japão por meio dos filmes e o decorrente sentimento de desilusão com as mudanças ocorridas naquele país também estão presentes na lembrança de Olga Futemma sobre a relação de seus pais com o cinema. Nos relatos de Olga, assim como nos de Eunice Yokota, o sentimento de desilusão com o Japão do pós¬guerra funcionou como uma reafirmação da decisão dos pais dela de fixarem residência no Brasil.” [p. 214]

Jean¬-Claude Bernardet acredita que a crítica publicada nos jornais não desempenhou papel importante para a apreciação do cinema japonês pelo público não nikkei: o prêmio conquistado em Veneza por Rashomon em 1951 foi o momento decisivo, a partir do qual o cinema japonês passou a existir também para o público não nikkei e não cinéfilo.” [p. 233]

“Assim como no caso do público japonês e nikkei dos cinemas da Liberdade, os frequentadores não nikkeis dessas salas não constituíram um grupo único e homogêneo. As diferenças entre eles — fossem estéticas, ideológicas, geracionais, de interesses, de turmas de amigos, de ocupação, de envolvimento com a cultura japonesa — provocavam desde pequenos atritos intelectuais até a explicitação pública dos conflitos, como na violência “japonesa” dos filmes de João Batista de Andrade.” [p. 264]

“Preconceitos e barreiras entre nikkeis e não nikkeis existiram também em relação aos filmes japoneses. Ricardo Gonçalves lembra¬se de um episódio com um filme que o marcou fortemente, Tokyo no hito sayonara [Adeus, querido de Tóquio, 1956], de Ishiro Honda, uma história de amor com fim trágico, sobre a qual um crítico de cinema escreveu tratar¬se de uma comédia sem sentido, que só poderia interessar ou ser entendida pelo público japonês. A experiência de Gonçalves com o filme, no entanto, por mais orientalizado que ele fosse, contradiz essa barreira cultural ou cognitiva do filme para o público não nikkei.” [p. 270]

Cinema japonês na Liberdade, de Alexandre Kishimoto • Editora Estação Liberdade • Prefácio de Jeffrey Lesser • 16 x 23 cm • 304 páginas • ISBN: 978-85-7448-216-3 • R$ 48,00

 

O AUTOR

Alexandre Kishimoto é mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pesquisador especialista em cinema e antropologia. Integra o Grupo de Antropologia Visual da USP e atua em projetos culturais e educativos em coletivos como a Associação Cultural Cachuera! e o Núcleo Hana de Pesquisa e Criação Teatral.

 

Lançamento com sessão de autógrafos no dia 26 de Março, terça feira, 18h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2.073), São Paulo.

 

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