Era para ser um trivial almoço para fazer um balanço do ano passado, e alinhar novos projetos com o chef Shin Koike. O balcão de sushi do Sakagura A1, agora comandado por Celso Amano, parecia receber nova luminosidade. Subitamente, o chef Shin Koike abandona nosso almoço e pula para dentro do balcão, e silenciosamente, começa a preparar arranjos inimagináveis. Na realidade, mesmo depois de tantos anos de convivência, incluindo os dois anos de produção do livro “A Cor do Sabor: A Culinária Afetiva de Shin Koike” (editora Melhoramentos), nunca tinha visto Shin em momento tão solene, à frente do manaita, a tábua de corte, que lá no Sakagura é da marca Hasegawa, top no quesito higiene, de uma límpida alvura que parece emanar luz.
O simples almoço virou um banquete inesperado de início de ano.

A enguia unagui está quase em extinção e sua importação aqui no Brasil está comprometida já há alguns meses. Por conta disso, o chef Shin Koike foi procurar alternativas nacionais para substituir esta iguaria e encontrou no mapará, peixe encontrado em abundância no Rio Amazonas e Tocantins. Seu teor calórico se assemelha ao do unagui, e aqui foi preparado igualzinho, com tare e servido com pitadas de sanshô. Na escolta, vieiras grelhadas sobre berinjela ao missô e uma meia lua de pupunha na brasa. Tudo sustentável.

O bonito ceviche de pargo foi preparado por Celso Amano. O diferencial aqui foi o molho ponzu, com leve toque do cítrico yuzu, e apresentado em forma de gelatina, com rodelinhas de tomate cereja. Foi servido com deliciosas e refrescantes algas wakame.

O prato seguinte foi uma obra de arte, na verdade dupla obra de arte, pois foi montado por Celso Amano numa obra original da ceramista Kimi Nii, uma taça invertida, especialmente moldada para atender uma vontade estética do chef Shin. Um moriawase de pequenos sashimis, que mais pareciam pequenas joias.

Aqui começava a intervenção de Shin Koike. Às finas tiras de lula fresca foi agregada uma pasta de uni, ouriço do mar, que além de delicioso, tem o dom de trazer o frescor do mar. Montada sobre uma cama de nabos em tiras finíssimas, coberta por uma folha de shisso e fatia de limão siciliano, tudo dentro de uma taça de saquê, outra interessante apropriação. Para o topping exclusivo, Shin retira de uma garrafa com líquido verde parecendo clorofila uma pequeníssima frutinha com talo e duas folhas decorativas de tsukubane, uma fruta silvestre que dá nas montanhas. Tem o formato da peteca usada nas brincadeiras com raquete de ano novo. Daí o seu uso neste prato.


O prato seguinte é algo que poderíamos definir como uma sinfonia para começar o ano. Uma harmonização com itens que são recorrentes no osechi-ryori, o banquete de ano novo. Aqui numa versão microcósmica, cabendo tudo num prato que lembra um oceano com ilhas, ondas e barquinhos. Dá para notar? Os feijõezinhos kuromame vieram de Kyoto, onde são produzidos, e são cozidos doces, servidos num barquinho de cerâmica que lembra uma flor de crisântemo. À frente, um konbumaki, enrolado de alga konbu, amarrado com uma tira de kanpyô, um tipo de cabaça desidratada. E esse caracol vermelho? É um tchorogui, são tubérculos comestíveis, apreciados como conservas bem azedas e fazem bom contraponto com os feijões doces. Os tubérculos são praticamente incolores e ficam em conserva de licor de ameixa, quando adquirem naturalmente esta coloração. Ao fundo vemos vieiras frescas, salmão zuke, marinado em shoyu e saquê, que ficou ótimo com as tiras de cebola roxa. A ilha de tiras de nabo recebeu “árvores” de brotos, numa performance que ilustra bem como a culinária japonesa é essencialmente, tridimensional, buscando verticalidade na apresentação.

Daí seguiu-se uma sequência de sushis, num estilo de improviso criativo de Shin, onde imperou a originalidade. Nada de sushis tradicionais, como o niguiri de maguro (atum), com um topping de pimenta curtida no shoyu. E o shari (arroz do sushi), um encanto de explosão de sabor, quando os grãos se dissipam no céu da boca, liberando o ótimo frescor do vinagre.


Para finalizar, a última surpresa: um sorbet de saquê, que conserva a integridade do sabor da bebida, adoçado unicamente pela lichia em conserva.

Esta sequência foi preparada por Shin em caráter experimental. Não está no cardápio e provavelmente nem vai entrar devido aos raríssimos itens, de difícil obtenção. Por isso, compartilhamos aqui com os leitores de Jojoscope, pois pelo menos as imagens ficam aqui preservadas.

Então, Feliz Ano Novo, mesmo !!
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