Ninjas, Princesas e caramelos

E para finalizar a Mostra Verão de Clássicos na Cinemateca Brasileira, publicamos um artigo lindo escrito pela diretora da instituição, Olga Futema, em 1986, com sabor de nostalgia.

 

Shingo Jubanshôbu: uma das séries de sucesso do gênero samurai (jidai-geki), estrelado por Ogawa Hashizo, ator oriundo do teatro Kabuki que se especializou em papéis de jovem e bonito samurai, nas produções da Toei, exibido aqui em São Paulo, com exclusividade, no Cine Niteroi.

São Paulo, 1955.

Quase todos os sábados, o mesmo ritual: a família se aprontando, o táxi grande – onde eu ia em pé sobre os meus quatro anos -, o saguão do cine Niterói na rua Galvão Bueno, bairro da Liberdade.

E então, acontecia: depositavam-me na bilheteria do cinema, junto da funcionária japonesa extremamente gentil, colocavam uma caixinha amarela de caramelos em minhas mãos, despediam-se e eu os via atravessar a cortina verde que nos separaria por duas horas. As breves espiadas que eu dava lá para dentro me falavam de um mundo escuro e altas vozes faladas em japonês.

De repente, as cortinas se abriam e eu reencontrava a família e, estranho, todos me pareciam transformados: minha mãe, às vezes, saía enxugando lágrimas; meu pai, pensativo; minhas irmãs, comentando os atores.

Hoje, não encontro sequer uma caixa de caramelos parecida com aquela. Os anos de glória de exibição de filmes japoneses se acabaram. E nós, nós crescemos.

Olga Futema, relembrando filmes de Ozu.

Da década de 50, os japoneses lembram-se do cine Tokyo na rua São Joaquim, e do cine Niterói, inaugurado em 1953. A presença dos ambulantes que levavam as fitas nos “kaikan” (clubes) do interior era fundamental para a continuidade de circulação desses filmes: ainda em 59, a empresa Cine Nippon (distribuidora) contava com quatro funcionários ambulantes e a Toei tinha até um projetor próprio para essas sessões.

Na década de 60, a presença do cinema japonês se consolida: quatro salas, todas no bairro da Liberdade, com uma oferta total de aproximadamente 4.000 poltronas… e as casas lotavam nos fins-de-semana. O cine Niterói ainda era na Galvão Bueno, antes da construção do elevado Costa e Silva: 1.400 lugares, fitas de aventuras e samurais; o cine Nippon, tido como o mais chique, as poltronas dispostas em degraus e não em rampa, sete “indicadores” (fazendo às vezes de porteiras e lanterninhas) servindo as “obátchans” que se moviam curvadas e reverentes entre as fileiras, filmes tradicionalistas, dramas familiares e regionais; o cine Nikkatsu, funcionando no lugar do cine Tokyo, do qual ninguém mais diz nada; o cine Jóia, exibidor dos filmes da Toho, que sempre se notabilizou por produzir os Kurosawa/Mifune.

O Corvo Amarelo (Kiiroi Karasu): fenômeno de bilheteria numa época em que ninguém conhecia o cinema japonês.

Foi também a década em que a colônia experimentou um profundo sentimento de orgolho: os filmes começaram a atravessar as fronteiras do bairro e atingir o público ocidental. Já em 1959, a Lenda de Narayama, de Keisuke Kinoshita, tinha inaugurado um período feliz para a distribuição japonesa em salas outras. Em 1962, a Praça da República conhece filas de japoneses e brasileiros esperando a vez de ver a primeira parte de Guerra e Humanidade, de Masaki Kobayashi, no cine República. O Corvo Amarelo, de Heinosuke Gosho, em 1963, fica treze semanas em cartaz no cine Coral, para depois seguir para o Rio.

A Lenda de Narayama, de Keisuke Kinoshita, clássico dos clássicos.

É como se, embutida na apreciação da crítica e do público brasileiros, estivesse presente uma aceitação, digamos, da nacionalidade japonesa por parte dos brasileiros. Era um espaço novo que se abria: o imigrante comum não pensava em termos de distribuição, exibição, comércio, etc.; naquele momento, ele se considerava merecedor de respeito por parte do brasileiro na medida em que esse brasileiro admirava, por exemplo, Toshiro Mifune. Difícil descrever a importância dos chamados filmes “nobres”, de aceitação internacional, para o processo de adaptação dos japoneses entre nós; difícil também apontar o momento em que o cinema deixa de ser apenas uma alternativa de lazer para se tornar um elemento de escoramento para a fragmentada identidade cultural de um imigrante.

O movimento maior, evidentemente, continuava nos limites do bairro, mas era sempre saboroso saber que os paulistas, todos eles, tinham a chance de conhecer Kinuyo Tanaka, Ken Takakura, Machiko Kyo, Tatsuya Nakadai, Hideko Takamine e tantos outros rostos, rostos, sempre rostos emoldurados nas salas de espera.

Depois, a queda.

Por uma ausência de estratégia das companhias distribuidoras que garantisse a formação de novos públicos ou por um natural movimento da nova geração de nisseis para a cidade como um todo, ou ainda por tudo isso mais a pressão das regras de importação – como a copiagem obrigatória em território brasileiro – e dos altos custos de tradução, legendagem, taxas (altos para quem tem apenas uma sala de exibição), cada uma dessas companhias atravessou, no final da década de 60, uma trajetória de decadência ininterrupta.

O depósito de filmes da Toho, nesta época, dá uma ideia bastante precisa desta decadência. Filmes importantes empilhados nos fundos de uma floricultura, lugar úmido e inadequado até para quem não tem como circular muito os mesmos filmes.

Karasu no Shiro: um dos clássicos dos filmes de ninja, exibidos pelo Cine Niteroi.

Resultado: a Nikkatsu e a Toho deixaram de trazer filmes porque o Brasil deixou de ser um mercado rentável e os seus escritórios brasileiros não conseguiam resolver as dificuldades que se avolumavam. Em 1980, o cine Nippon, aquele tão elegante, fecha e em 1987, o cine Jóia transforma-se num estacionamento de automóveis.

O cine Niterói, único sobrevivente, com suas 824 poltronas e após o esforço de instalação de equipamento dolby, ainda sofre crises tanto de público quanto de identidade. Numa tentativa de conciliar elementos de difícil convivência, sua programação tropeça com limitações e exigências que formam um quadro limite: atendimento a um público japonês que se afasta cada vez mais do cinema; apresentação contínua de reprises – seja de clássicos, seja de filmes “yakuza” -; cumprimento da lei que determina a obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros e, sendo os títulos mais nobres muito caros, a solução é recorrer às pornochanchadas. O resultado, desconcertante, está expresso na programação da primeira semana de maio/88: Jovem Sem Sonho e O Sangue Não Nega (dois “yakuza”) e Tentação na Cama, de Ody Fraga.

Com uma ocupação média de apenas 100 poltronas/dia, com o último lançamento feito no já longínquo janeiro de 1987 e com os altos custos de manutenção, as perspectivas para o cine Niterói são bastante sombrias. Mesmo com os ciclos planejados para este ano, dificilmente esta casa terá voos mais seguros, no futuro.

Resta, ainda, tentar compreender o que se passou, afinal. Havia um quadro especial: uma colônia bastante estruturada internamente, com uma cinematografia brilhante, sólida, sustentada por enormes empresas no seu país de origem. Lentamente, nesses vinte anos, esta colônia se dilui, seus descendentes passam a conhecer outras cinematografias, a procurar sua identidade e seu lazer em limites mais largos. E o videocassete começa a ocupar mais e mais as salas dos imigrantes e seus descendentes, recheando as tardes de domingos de filmes, shows e novelas – meio que solucionando, em tela pequena, a necessidade de estar em contato com a terra japonesa. Há inclusive as reportagens focalizando aspectos exóticos da natureza brasileira, veiculadas por emissoras nipônicas, que encontram verdadeiros aficionados entre os imigrantes. Em algumas locadoras do bairro da Liberdade, a divisão das estantes é bastante curiosa: novelas, musicais, samurais, desenhos, suspense e… cinema.

Coincidentemente, aquele cinema, apesar da sustentação industrial, perde o seu fôlego, seu brilho, seu inconformismo de propostas, passando a garantir o seu espaço internacional com poucos grandes filmes e nomes de alguns diretores famosos.

Cine Niteroi, na rua Galvão Bueno. Fila para ver as grandes produções japonesas.

Mesmo tentando superar o sentimento de nostalgia em relação aos anos 60 – porque, assim como ninguém mais deixa sua filha numa bilheteria, não importa quão gentil seja a bilheteira, é preciso reconhecer também que o espaço do comércio desses filmes realmente deve ser redefinido segundo o perfil atual da colônia, da cidade e da produção lá no Japão -, ainda fica a expectativa de que se resolva, de algum modo, essa distância que se formou entre o filme japonês e o público que, teoricamente, seria bastante grande: vivem hoje, no Brasil, quase um milhão de japoneses e descendentes, 80% dos quais em São Paulo.

Tange Sazen, o espadachim de um olho só, era sucesso nas matinés.

Há uma história desse cinema que deve ser conhecida pelas novas gerações: há um movimento novo nesse cinema, que deve chegar até nós. Como outras histórias e outros movimentos do mundo. Talvez seja uma inquietação muito, muito pretenciosa, na medida em que vivemos um momento em que mesmo o cinema brasileiro parece tão distante de seu próprio público. Para nós, que crescemos, sobra o consolo de saber que os caramelos eram gostosos, que o ritual ensinou a gostar de cinema e que os filmes – todos sabem -, os filmes eram bons.

 

Olga Futemma

 Parte do artigo publicado em FILME CULTURA NO.47, agosto 1986, informações obtidas junto a Rosa T. Iwama (administradora do escritório Shichiku) e a Augusto T. Tanaka (proprietário do cine Niterói).

Pesquisa complementar e colaboração de José Francisco de Oliveira Mattos.

Olga Futemma é realizadora de curtas-metragens e de vídeo, além de pesquisadora do cinema brasileiro. É atualmente diretora da Cinemateca Brasileira.

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