Mondo Ozu

Jojoscope apresenta aqui um denso texto analítico do universo Ozu, escrito pelo professor André Parente.

YASUJIRO OZU: A arte do interstício e do vazio[1]

 

André Parente

O cinema de Yasujiro Ozu suscita, ainda hoje, muitas questões, já que as tensões que ele anima são bastante atuais. A obra de Ozu não pertence ao passado do cinema, mas ao seu futuro. Trata-se de um cinema novo que aponta ao mesmo tempo para o fim de um antigo mundo e para a ausência de mundo, para o fim de um antigo cinema e para a ausência de cinema. Falar de Ozu, hoje, é ao mesmo tempo um prazer e uma necessidade, uma forma de resistência, uma vez que o campo onde se exerce o cinema se reduz a cada dia, devido à proliferação de imagens que não têm mais objeto ou sentido, seja por causa da proliferação de clichês que desmaterializam o real e nos impedem de ver, seja porque a indústria do cinema tende a se confundir com a indústria da publicidade e do cosmético.

Yasujiro Ozu nasceu em 12 de dezembro de 1903, em Tóquio. Entre 1927 e 1963 realizou 53 filmes de longa-metragem, 21 dos quais desapareceram, formando uma grande crônica da metamorfose da vida da classe média do Japão e no processo de ocidentalização sofrido pela família japonesa. No entanto, o olhar de Ozu não é nem ressentido, nem acusador, nem mesmo nostálgico. As relações sociais que formam a substância de seus filmes – os conflitos de gerações, as relações de trabalho e as relações familiares constituem mais ou menos os três temas básicos – são mostradas segundo um ponto de vista móvel que segue a inclinação do olhar e as solicitações do novo tempo. Ozu é um pensador, um artista, diria Nietzsche, que afirma o novo mundo e o novo homem. Não se trata apenas de um saber, mas de uma prática criativa e sutil do pensamento que não confunde o sentido do novo com a comunicação e a representação de verdades vividas, nem com as apresentações retificadas do real. O cinema de Ozu  rompe com as imagens verdadeiras e justas do cinema clássico, bem como com os sistemas de representação que nos dão a ilusão do mundo, ao criar imagens-tempo como produção do real enquanto novo. Se a arte de Ozu é uma arte Zen, isso não se deve unicamente ao fato dela utilizar elementos da arte e da cultura Zen – arte floral, marcial, teatral, musical, poética, cerimônia do chá etc, – mas sobretudo ao fato de ela apresentar uma relação não arrogante com o real e exprimir a relatividade do olhar: um olhar que é pura contemplação sem distanciamento; pura aceitação sem resignação; pura enunciação sem sujeito; pura memória co-extensiva ao presente mesmo… Se o cinema de Ozu pertence a uma sabedoria Zen, isso se deve, mais profundamente, ao fato de ele não confundir sentido e verdade. Não impor nem suprimir o sentido, mas fazê-lo flutuar, deixá-lo aberto e incerto, experimentá-lo. Em Ozu, a sutileza do sentido se dá através de três figuras de estilo: a nuança, a repetição e o vazio. Tornar sutil o sentido daquilo que se vê e se ouve, para que o sentido do que se vê e se ouve se abra ao que há de mais profundo no interior e no exterior, rompendo com qualquer ponto de vista fixo e totalitário. O olhar em Ozu somente está dentro porque está fora, puro interstício, à distância sem distância, já que ele não pode se encarnar, tomando emprestado o olhar de um personagem.

Podemos chamá-lo de olhar espectral ou fantasmático, não porque venha do outro mundo, mas porque tende a se ausentar nesse que o carrega, ao mesmo tempo em que altera o olhar pessoal, já que o anula enquanto centro.

As diversas imagens que “pontuam” os filmes de Ozu – os espaços e paisagens vazias, as roupas que secam ao vento, os trens que cortam a paisagem urbana – são também como que interstícios, linhas de fuga que impedem que o filme, tanto quanto o olhar, se constitua enquanto espaço de interioridade (totalidade). De O coral de Tóquio a Dias de outono, os trens parecem desviar ou mesmo excluir os seres que os contemplam de suas trajetórias, assim como faz um silêncio que emerge no meio de uma linha musical. As próprias trajetórias dos personagens foram cada vez mais se transformando em linhas de fuga, marcadas pela imobilidade, alteridade e indeterminação. Assim, os personagens que sofrem da ausência de um outro – em Pai e filha, Também fomos felizes, Era uma vez em Tóquio, A rotina tem seu encanto, o pai fica só seja porque a mulher morre, seja porque a filha se casa – foram se transformando cada vez mais em personagens que sofrem mais radicalmente da ausência de si mesmos.

Coral de Tokyo

No início, o cinema de Ozu era bastante influenciado pelo cinema americano, sobretudo Lubitsch, MacCarey e Hawks: a mistura da comédia, do melodrama e do filme noir, a utilização um tanto expressionista da luz, as fusões etc. Nesta época, seus filmes se alternavam entre comédias sobre os estudantes e melodramas realistas sobre as dificuldades da vida dos assalariados e desempregados. Na verdade, a divisão entre a comédia e melodrama exprime muito bem a alternância de dois sentimentos presentes em toda a sua obra: o humor sutil, irônico e anarquista, e a tristeza suave e indiferente (mono no aware). Mas ao contrário do cinema americano, Ozu rejeita os acontecimentos, as ações e os personagens excepcionais e extraordinários: nele, tudo é ordinário, banal, cotidiano, repetitivo. Mesmo as lágrimas e a morte são parte da vida ordinária e não emergem como tempo forte: “eu quero dar às pessoas o sentimento da vida sem retratar os altos e baixos dramáticos” (2).

To be or not to be, de Lubitsch: referência.

Pouco a pouco, o estilo de Ozu foi se depurando e se tornou um dos mais concisos e sóbrios de todo o cinema, abandonando todos os procedimentos de ênfase e hipérbole – iluminação expressionista, fusão, ritmos e elipses marcadas, movimentos de câmara, dramatização dos gestos – para adotar um princípio de “naturalidade” – Zen, o wou-chi: um nada de nada, um nada especial, sublime, que se refere à um estado de coisas expresso em sua naturalidade. Basta lembrar que mesmo os atores não representam nada. O que importa são as suas presenças físicas e morais. Não é a toa que Ozu fala deles como de “pinceladas de cor”. Em 1932, durante a filmagem de Eu nasci, mas…, Ozu abandona para sempre as fusões e se decide pela montagem cut (corte seco).

Eu nasci mas...

Em 1931, em O coral de Tóquio, “forçado” a baixar a câmera a alguns centímetros do solo para filmar as crianças numa sequência antológica, ele teria gostado do resultado e o adota para sempre. Não podendo deslocá-la sob um tal ângulo, ele acaba aceitando o corolário da câmera fixa. Plano fixo, câmera baixa, em ligeira contre-plongée, o teriam levado a adotar também a objetiva de 50 milímetros, na medida em que uma objetiva maior ou menor distância focal, nessa posição, implicaria em ângulos acentuados ou aberrantes. A câmera baixa de Ozu não parou de fazer glosar seus exegetas: parábola estética, parti-pris arbitrário, expressão da comunicação horizontal entre os personagens (o conflito de gerações seria a comunicação vertical), o olhar da infância perdida sobre a imobilidade dos adultos… Alguns chegaram mesmo a apelar para o “alcoolismo” de Ozu. Ora, o plano-tatami de Ozu tem a ver com a sabedoria Zen que nos ensina que tudo na vida é ordinário, regular, cotidiano: “às vezes”, diz Ozu, “as pessoas tornam as coisas simples complicadas. A essência da vida, que parece confusa, pode ser simples de maneira totalmente inesperada” (3). Lembramos que a experiência do satori é assim definida por Suzuki: “ela é semelhante à experiência ordinária cotidiana, salvo que se passa a alguns centímetros do solo”(4). Não há nada melhor para explicar o “plano-tatami”.

Plano-tatami em "O sabor do chá verde sobre o arroz"

No cinema clássico, a determinação do enquadramento e o plano é motivada, isto é, a decupagem deve orientar o espectador no espaço e no tempo, mantendo a ilusão que o que é filmado, narrado ou representado pre-existe aos dispositivos fílmicos utilizados para enunciá-lo. Em Ozu, as descontinuidades espaciais e temporais produzem uma transgressão da decupagem clássica, destruindo os dispositivos de representação que constituem o espaço-tempo orgânico e totalitário. Os espaços descontínuos e vazios, as descontinuidades de olhar, de direção, de movimento, de localização dos objetos, tão frequentes e sistemáticos na obra do cineasta japonês, atestam a anterioridade dos processos fílmicos utilizados em relação ao conteúdo narrado ou filmado. Em muitos de seus filmes, por exemplo, se um personagem que está sentado se levanta, a câmera não o reenquadra, continuando imóvel, mostrando a parte baixa de seu corpo. No plano seguinte, também fixo, a meia-altura e no mesmo eixo, vemos o personagem anterior se levantar e entrar no campo visual. Essa repetição do gesto do personagem, que parece ter se levantado duas vezes, é considerada um defeito de decupagem, já que desfaz a “impressão de realidade” ao criar um retrocesso no tempo, atestando assim a anterioridade do dispositivo fílmico sobre seu conteúdo.

Na maioria dos filmes que respeitam as regras de continuidade, quando dois personagens se olham ou conversam, o campo/contra campo mostra cada um deles isoladamente olhando em direção contrária. Em Ozu, o olhar dos personagens vão quase sempre na mesma direção e criam no espectador uma impressão de desorientação espacial e o sentimento de que os personagens não somente não se olham mas olham o vazio. Segundo Bergala, os “olhares-Ozu” se furtam à paixão suturante do espectador, frustrando a sua vontade de identificação (5). O olhar indeterminado dos personagens de Ozu, na medida em que não sabemos de onde e para onde eles olham, coloca o espetador numa situação singular: um espectador que não seria nem centrado (voyeur), nem excluído (interpelado pelo filme), mas espectador desse vazio, desse nada que os personagens parecem olhar; um espectador flutuante e descentrado, jamais aspirado pela ficção; um espectador cujo olhar participa da linha de fuga dos olhares, jamais um interlocutor. Se o cinema de Ozu nos dá a impressão de que os homens e as coisas se mostram tais como eles são em si, é que os dispositivos fílmicos criados por Ozu são paradoxalmente arbitrários e sem origem. O cinema de Ozu, como mostrou muito bem Bergala, consegue o milagre de criar um tipo de enunciação que diz: “eis aqui, mas um eis aqui que não remeteria, como em tantos outros cineastas, à autoridade do mostrador ao eu que elegeu o isso em questão (eu escolhi mostrar isso), nem a necessidade histérica de um destinatário subjugado (veja isso que é para você).”(6)

Para onde olham os personagens de Ozu? Cena de "Era uma vez em Tokyo"
Pai e Filha: antológica cena do teatro Nô

Assim como os espaços e olhares descontínuos, descentrados, os espaços vazios de Ozu nos dão, o sentimento de uma enunciação sem autor, de uma presença concreta criada por uma enunciação vazia, de uma forma de contemplação Zen que faz desaparecer sujeito e objeto. Muitos filmes de Ozu começam com imagens de espaços vazios, como em Pai e filha: três planos fixos de estação de Kamakura vistas do exterior onde vemos pedaços de um prédio, árvores e flores, e um plano fixo do teto do templo cujas arestas formam diagonais simétricas. Os espaços vazios podem muitas vezes surgir numa cena ou entre uma cena e outra. No entanto ao contrário do que se pensa, eles não possuem nenhuma função narrativa ou descritiva, como por exemplo, a descrição do espaço que engloba a situação narrada. Os espaços vazios de Ozu são autônomos: são fortes injeções infinitesimais de atemporalidade. Segundo Deleuze, para quem Ozu é inventor das imagens-tempo, juntamente com Welles, a criação de imagens óticas e sonoras puras é comparável à conquista de um espaço puramente ótico na pintura expressionista (7). Deleuze mostra muito bem que os espaços vazios em Ozu se dividem em espaços ou paisagens vazias e naturezas mortas, assim como em Cézanne. Os primeiros são acontecimentos puramente óticos e sonoros num espaço vazio de acontecimentos: são os corredores, os quartos e as cozinhas, as ruas, os templos, os telhados e as paisagens, todos eles desertos. Quanto à natureza morta, ela se define pela presença em primeiro plano, de objetos que se tornam seus próprios invólucros: é a famosa imagem do vaso no quarto de Noriko em Pai e filha: é a belíssima imagem do vaso com frutas em Mulher de Tóquio ou das frutas em cima da mesa em O que foi que a senhora esqueceu?; é a imagem da chaleira fumegante em O sabor do chá verde sobre o arroz. A natureza morta, diz Deleuze, é o tempo, pois tudo o que muda está no tempo, mas o tempo ele mesmo não muda, ele só poderia ele mesmo mudar num outro tempo, ao infinito. No momento em que a imagem cinematográfica se confronta o mais estreitamente possível com a fotografia, dela se distingue também o mais radicalmente. As naturezas mortas de Ozu duram, têm uma duração, os dez segundos do vaso: essa duração do vaso é precisamente a representação do que permanece, através da sucessão dos estados mutáveis. Uma bicicleta também pode durar, quer dizer, representar a forma imutável disso que se move, à condição de permanecer, de ficar imóvel colada no muro (Uma história de ervas flutuantes). A bicicleta, o vaso, as naturezas mortas são imagens puras e diretas do tempo. Cada uma delas é o tempo, a cada vez, sob tais e tais condições do que muda no tempo. O tempo é o cheio, quer dizer, a forma inalterada preenchida pela mudança” (8). Com as naturezas mortas e os espaços vazios, Ozu se confronta com a questão do cheio e do vazio no pensamento chinês e japonês. O cheio e o vazio são os dois aspectos ou dimensões da contemplação pura e do pensamento do permanente e do efêmero. O que permanece é o tempo como forma pura, o que muda é o efêmero, as coisas em sua evanescência: “agora”, diz Ozu, “creio que o que me atrai num filme é o seu aspecto transitório, sua qualidade evanescente, como a bruma” (9) A morte da família japonesa e a morte do indivíduo são os principais temas da última fase do cinema de Ozu. Mas a morte não é um acontecimento irrecuperável, ela é co-extensiva à vida e múltipla (nós não paramos de morrer). A morte é uma instância ao mesmo tempo permanente e mutável, cósmica e cotidiana: a morte como forma pura imutável do que muda.

O túmulo de Ozu: o vazio, o nada

Ozu morreu em 1963, no dia de seu aniversário, de um câncer. Foi enterrado em Kita-Kamakura, no templo de Enkaku-ji. A sua tumba, uma pequena caixa de mármore negro, não traz nenhuma data ou nome, somente um ideograma do chinês antigo – mu – que significa vazio, nada, o nada…

 

Notas

  1. 1. O cinema de Ozu é feito sob o signo do ma e do mu. O ma é uma noção inerente a cultura japonesa, e significa um interstício ou uma ruptura entre dois elementos ou ações sucessivas. O mu é um signo chinês e significa vazio,nada.
  2. 2. Ozu Yasujiro, “Pour parler de mes films”. In Positif no. 203, p.25. Neste texto, Ozu comenta de forma sumária cada um de seus filmes.
  3. 3. Idem.
  4. 4. Cf. Watts, Alan. O budismo zen. Lisboa, Ed. Presença, 1979, pag. 42. Ver também Anderson Lindsay. “Two inches off ground”, in Sigth and sound no. 27, 1957-58. Esse foi talvez, o primeiro artigo importante escrito no ocidente sobre Ozu.
  5. 5. Bergala, Alain, “L’homme qui se lève”. In Cahiers du Cinema no.311, 1980, pp.24-30.
  6. 6. Idem, p.30
  7. 7. Deleuze, Gilles, Cinéma 2: l’image-temps. Paris, minuit, 1985, p.26.
  8. 8. Idem, pp.27-28.
  9. 9. Ozu, Yasujiro, opicit, p. 19.

André Parente é doutor em cinema pela Universidade de Paris VIII, onde estudou (82-87) sob a orientação de Gilles Deleuze. Em 1987 torna-se professor da UFRJ, onde funda o Núcleo de Tecnologia da Imagem (N-imagem). Atuando na interface entre cinema, artes visuais e novas mídias realiza desde os anos 1970 filmes, vídeo, fotografia, vídeo-instalações e instalações interativas onde predominam a experimentação. Entre os seus principais livros, estão : Yasujiro Ozu: o extraordinário cineasta do cotidiano (Marco Zero, 1990); Imagem-máquina. A era das tecnologias do virtual (Ed. 34, 1993); Sobre o cinema do simulacro (Pazulin, 1998); O virtual e o hipertextual (Pazulin, 1999); Narrativa e modernidade : os cinemas não-narrativo do pós-guerra (Papirus, 2000), Redes Sensoriais: Arte, Ciência e Tecnologia (Contra-Capa, 2003), Tramas da rede Novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação (Sulina, 2005); Cinema et Narrativité (2005), Preparações e tarefas (Catálogo, 2008).

Aliando a pesquisa sobre o pensar e fazer a imagem com dispositivos interativos a temáticas que versam sobre o papel do espectador e da virtualidade, André Parente tem participado de exposições individuais e coletivas no Brasil, França, Alemanha, México, Espanha, Colômbia, Suécia, entre outros.

 

Vencedor dos prêmios Sérgio Motta de Arte e Tecnologia (2005), Petrobrás (2004 e 2006) e Rumos Itaú Cultural (2002).

Leitura de trechos do livro de Paul Scharader, “O Estilo Transcendental no Cinema Ozu, Bresson e Dreyer” insertado em documentário “Tributo a Yasujiro Ozu – Banshun (Pai e Filha)” de Russ McClay

 


 

Coletânea de cenas dos últimos filmes de Ozu (a cores). Reparem a câmera baixa e a composição típica de Ozu.


 

 



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